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Mostrando postagens de janeiro, 2022

A noção baumaniana de vida líquida

 I t is impossible to escape the impression that people commonly use false standards of measurement — that they seek power, success and wealth for themselves and admire them in others, and that they underestimate what is of true value in life. (Sigmund Freud, Civilization and Its Discontents) Em  Vida Líquida , Zygmunt Bauman parece fazer uma crítica à escolha de viver no presente, no aqui e agora — o  hic et nunc  da filosofia existencialista. Maz é preciso não confundir aquilo a que Bauman chama de vida líquida — pois, do contrário, seria um pleonasmo — com a constatação da brevidade da vida e da impermanência e inconstância das coisas materiais — que é talvez tão antiga quanto o homem e é ponto de reflexão inesgotável presente em todas as filosofias, tanto ocidentais quanto orientais —, nem muito menos com a escolha de seguir o que diz Horácio: "carpe diem quam minimum credula postero". Seria audácia do sociólogo polonês querer responder positivamente à antiquíssi...

Literatura: lugar de sonho e memória

  C’est lui qui, malgré les épines, L’envie et la dérision, Marche, courbé dans vos ruines, Ramassant la tradition. De la tradition féconde Sort tout ce qui couvre le monde, Tout ce que le ciel peut bénir. Toute idée, humaine ou divine, Qui prend le passé pour racine, A pour feuillage l’avenir. (Victor Hugo, La fonction du poète). De todas as definições ou conceituações de literatura que perfazem a fortuna teórica, a que mais me agrada, e à qual subscrevo, é a de literatura como sonho. Tocada tanto por críticos e estudiosos, a exemplo de Antonio Candido, quanto por escritores, como Fernando Pessoa, a noção de literatura como forma de sonhar responde a duas questões importantes para a teoria literária, a saber, o que é literatura e para que ela serve, pois é o sonho, na tradição de diferentes povos, um lugar de possibilidades que se nos colocam como orientações e inspirações de vida e de comunhão com os outros. A literatura, isso eu defendo, é também um lugar como esse, de conhecime...

O amor e a vida real: uma leitura comparativa de Madame Bovary e Senhora

  Quando a ideia de amor toma o lugar do objeto amado e se espera que o real corresponda em todos os aspectos ao ideal, experimenta-se desilusão, que é como acordar de um sonho, ao se perceber a frustrante distância entre o que é e o que deveria ser. Essa idealização do amor, uma regra no romantismo, é bastante criticada pela literatura realista, que enfatiza e escancara a realidade crua dos relacionamentos e da vida "como ela é". Uma obra expoente do realismo que retrata as tensões entre o amor e a vida real é  Madame Bovary  (1857). Emma Bovary,  née  Roualt, sonha com o amor, com o extraordinário, com viver e realizar as aventuras dos heróis e das heroínas que admira nas páginas românticas, só para ver suas fantasias pulverizadas pelas coisas comezinhas e pelo aspecto prático da vida, que nos obrigam a pisar no chão. Contra esse fatalismo e em favor de um amor capaz de superar o pragmatismo cotidiano, coloca-se  Senhora  (1875). Madame Bovary Sob o ...

An overview of Utopia, by Sir Thomas More

  “EXCEPT ALL MEN WERE GOOD EVERYTHING CANNOT BE RIGHT, AND THAT IS A BLESSING THAT I DO NOT AT PRESENT HOPE TO SEE”. First published in Latin, in 1516, Utopia inserts itself among those oeuvres of political philosophy that attempt an outline of the ideal form of government and societal organization. The funny thing is that the work itself is poorly organized. It is divided into two books and the second book is by its turn divided into sections, but there is no inherent correlation with content. That being said, it is possible to make out some important themes that are discussed throughout the text. The first theme is about the ancient  discussion on political life  and whether one must apply himself and his wisdom to public affairs, specifically to the counselling of Princes, or reserve it to private life, and that discussion is posed as a matter of whether be a slave (or useful,  “the change of the word does not alter the matter” ) or maintain one’s peace and quiet...

Cultura, culto e colonização em Anchieta

No decurso da colonização do território que hoje se conhece como Brasil, estiveram presentes dois pólos de ação e de ideologia: o cristianismo e o agro-mercantilismo. Embora diametralmente opostos, esses dois pólos correram lado a lado, como as margens de um rio, com o objetivo comum de efetivar a empreitada colonizadora ibérica. Entenda-se: como colocou Alfredo Bosi, “a linguagem humanista e a linguagem dos interesses acordam sentimentos de contradição” (BOSI, 1999, p. 37). No entanto, parece haver um acordo tácito, no mínimo, entre a atividade econômica e a evangelizatória, quando o assunto é o negro e o indígena. Neste curto texto, focarei no indígena e em sua representação na obra e no pensamento de São José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil. Anchieta se destaca na história colonial do Brasil como um dos fundadores das cidades brasileiras de São Paulo e do Rio de Janeiro e seus esforços, juntamente com os de outro missionário jesuíta, Manuel da Nóbrega, na pacificação dos índio...

As formas de representação do negro na obra de Gregório de Matos

A obra literária atribuída a Gregório de Matos (1636-1696) forma, como diz Araripe Júnior, “um quadro da vida baiana extraordinário de luz e de verdade” (1910, p. 167, apud PERES, 1967, p. 59). Esse quadro é um que satiriza instituições, classes sociais, costumes e pessoas importantes. Um aspecto da sátira de Gregório de Matos que iremos analisar é a forma de representação da pessoa negra (e mulata), apontando as relações sociais e raciais da época.  A postura do artista em relação aos negros e principalmente às mulatas, em oposição ao modo como ele trata outras figuras de sua obra, por exemplo, a mulher branca, de origem ou traços europeus, é patente. A negra e a mulata são descritas como alguém que tenta o poeta. Tomemos um excerto do poema “Indo o poeta passear pela Ilha Cajaíba, encontrou lavando roupa a mulata Annica e lhe fez este romance”: “Tanto deu, tanto bateu co’a barriga, e co’as cadeiras, que me deu a anca fendida mil tentações de fodê-la”. A mulher negra e a mulata sã...

A representação do indígena nas epopeias indianistas do século XVIII no Brasil

Desde o início da formação da literatura brasileira, a representação do indígena na produção literária se configurou apenas do ponto de vista do não-indígena. Muito além da questão de lugar de fala, tal fato inexoravelmente desemboca na não-representação do indígena, mesmo quando é figurado cheio de virtudes, como a coragem. É o que acontece, por exemplo, n’O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, em que o índio é colocado, ao mesmo tempo, como corajoso defensor de sua terra e marionete dos Jesuítas e que, por isso, precisava da redenção proposta pelo império português. Portanto, a literatura que desde o arcadismo figura o índio, sem contudo representá-lo, pode ser denominada de literatura indianista, em oposição à literatura indígena – a que o representa. Sendo assim, quando falamos em “representação do indígena nas epopeias indianistas do século XVIII no Brasil”, queremos aludir realmente à falta de representação propriamente dita, visto que o indígena, além de ser pintado cheio de este...