A representação do indígena nas epopeias indianistas do século XVIII no Brasil

Desde o início da formação da literatura brasileira, a representação do indígena na produção literária se configurou apenas do ponto de vista do não-indígena. Muito além da questão de lugar de fala, tal fato inexoravelmente desemboca na não-representação do indígena, mesmo quando é figurado cheio de virtudes, como a coragem. É o que acontece, por exemplo, n’O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, em que o índio é colocado, ao mesmo tempo, como corajoso defensor de sua terra e marionete dos Jesuítas e que, por isso, precisava da redenção proposta pelo império português. Portanto, a literatura que desde o arcadismo figura o índio, sem contudo representá-lo, pode ser denominada de literatura indianista, em oposição à literatura indígena – a que o representa.


Sendo assim, quando falamos em “representação do indígena nas epopeias indianistas do século XVIII no Brasil”, queremos aludir realmente à falta de representação propriamente dita, visto que o indígena, além de ser pintado cheio de esteriótipos, é também tido como constituinte de um povo sem vontade política própria, pendulando entre diferentes formas de colonização (“entre a cruz e a espada”). Tal forma de figurar o indígena retira dele o próprio protagonismo nas lutas por direitos. Em suma, o índio não é representado, mas apenas usado como um artifício retórico. Ainda que escritores como Basílio da Gama deixassem transparecer simpatia pelos índios, essa simpatia decorria da estereotipização, reduzindo o indígena apenas ao pitoresco, ao primitivo, quer dizer, apenas a uma figura de linguagem para contrapor a civilização. Antonio Candido aponta o seguinte sobre da Gama:


“(...) outros intuitos animavam o poeta; notadamente descrever o conflito entre ordenação racional da Europa e o primitivismo do índio. Ao contrário do que se dá em Cláudio, sentimos a cada passo certa indecisão entre ambos, como se o encantamento pelo pitoresco levasse o poeta a lamentar intimamente a ruptura do ritmo agreste pela civilidade imposta”. (CANDIDO, 2000, p. 121).


Essa visão para com o indígena revelada pela construção plástica d’O Uraguai, visão romântica, avant la lettre, revela-se também na ação do poema. Ao mesmo tempo que são apresentados como fortes, belos, valentes e honrados defensores de suas terras, os indígenas são colocados como marionetes vítimas da ambição dos jesuítas. Um indicativo disso são os seguintes trechos:


“Não sofrem tanto os índios atrevidos:
Juntos um nosso forte entanto assaltam.
E os padres os incitam e acompanham.
Que, à sua discrição, só eles podem
Aqui mover ou sossegar a guerra”. 

(Canto I)

“Que mais queres de nós? Não nos obrigues
A resistir-te em campo aberto. Pode
Custar-te muito sangue o dar um passo.
Não queiras ver se cortam nossas frechas.
Vê que o nome dos reis não nos assusta.
O teu está muito longe; e nós os índios
Não temos outro rei mais do que os padres”. 

(Canto II)


Ainda que o poema dê voz direta ao índio – como se verifica no segundo excerto acima  –, essa é uma voz, se não colonizada, ao menos instrumentalizada. É bem sabido que um dos objetivos de Basílio da Gama era exaltar a administração pombalina e atacar a Companhia de Jesus (cf. TEIXEIRA, 2015). O índio, no fim das contas, aparece apenas como um meio para este fim, e todo o elogio à figura do índio colabora para isto.


Assim sendo, as epopeias indianistas do século XVIII no Brasil, em vez de cantarem propriamente o índio, como se espera de uma epopeia, cantavam em última instância a metrópole. Tomemos o Caramuru (1781), de Santa Rita Durão. Podemos observar nessa epopeia a criação de uma mulher indígena, Paraguaçu, com características europeias. 


“Paraguaçu gentil (tal nome teve)
Bem diversa de Gente tão nojosa;
De cor tão alva, como a branca neve;
E donde não é neve, era de rosa:
O nariz natural, boca mui breve,
Olhos de bela luz, testa espaçosa:
De algodão tudo o mais, com manto espesso,
Quanto honesta encobriu, fez ver-lhe o preço.”
(Canto II, LXXVIII)


Paraguaçu de indígena só tem o nome e mesmo esse é alterado pelo batismo. Ela é europeia de corpo, alma e espírito, e, por isso, diferente da “Gente nojosa”, canibal e bárbara, diz Durão. O índio, como antes em Basílio da Gama, só é pintado como belo e virtuoso para compará-lo ao europeu e exaltar este. Constrói-se, então, uma dupla imagem que tem o europeu como referência: o índio é bom como o europeu; o índio não é bom como o europeu. Era de se esperar este modo de figuração, visto o projeto literário do Frei poeta: através das letras, legitimar a expansão do Império e da Fé. Não à toa pode o Caramuru ser tido como uma expansão d’Os Lusíadas (cf. POLITO, 2015). 


Mais uma vez a figura do índio é usada como figura de linguagem e, de novo, constitui-se uma má representação do indígena, quer dizer, não condizente com a realidade, visto que nos Cantos IV e V, a guerra entre os índios do recôncavo é baseada estritamente na imaginação. Isto em contraste com o fato de Durão ter se debruçado sobre os registros históricos, a ponto de Antonio Candido afirmar que “seu trabalho mental consistia principalmente em metrificar com mais ou menos habilidade as informações e sugestões colhidas na fonte” (CANDIDO, 2000, p. 172). Ou seja, a imagem do índio é confeccionada para cumprir os objetivos da política literária do Frei poeta.


Em suma, podemos declarar que a representação do indígina está ausente nas epopeias indianistas do século XVIII no Brasil, não obstante figurem o índio. Por ter contribuído para a estereotipização do indígena até os dias de hoje, uma representação confeccionada e colonizada é tão boa quanto nenhuma.



REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 9. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. 2 v.

DURÃO, Santa Rita. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia. 2. ed. Ed. de Ronald Polito. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GAMA, Basílio da. O Uraguai. In: TEIXEIRA, Ivan (Org.). Multiclássicos: épicos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Imprensa Oficial, 2008.

POLITO, Ronald. Introdução. In: DURÃO, Santa Rita. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia. Ed. de Ronald Polito. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. XI-XXXVIII.

TEIXEIRA, Ivan. O Uraguay e a poética cultural do mecenato pombalino. Floema, Vitória da Conquista, n. 2, pp. 35-58, dez. 2005.


Comentários

Postagens mais visitadas