Cultura, culto e colonização em Anchieta


No decurso da colonização do território que hoje se conhece como Brasil, estiveram presentes dois pólos de ação e de ideologia: o cristianismo e o agro-mercantilismo. Embora diametralmente opostos, esses dois pólos correram lado a lado, como as margens de um rio, com o objetivo comum de efetivar a empreitada colonizadora ibérica. Entenda-se: como colocou Alfredo Bosi, “a linguagem humanista e a linguagem dos interesses acordam sentimentos de contradição” (BOSI, 1999, p. 37). No entanto, parece haver um acordo tácito, no mínimo, entre a atividade econômica e a evangelizatória, quando o assunto é o negro e o indígena. Neste curto texto, focarei no indígena e em sua representação na obra e no pensamento de São José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil.

Anchieta se destaca na história colonial do Brasil como um dos fundadores das cidades brasileiras de São Paulo e do Rio de Janeiro e seus esforços, juntamente com os de outro missionário jesuíta, Manuel da Nóbrega, na pacificação dos índios foram cruciais para o estabelecimento de assentamentos coloniais estáveis. Verifica-se íntima articulação entre cultura, culto e colonização. Quer dizer, sob a égide da evangelização, abriu-se espaço para a máquina econômica agir sem empecilhos importunos – como teve na Confederação dos Tamoios e como haveria de ter depois na Guerra Guaranítica, no século XVIII, por exemplo. Assim, invertia-se a sequência de praxe: tomar posse violentamente das novas terras → rezar a “primeira missa”. Dessa forma, a evangelização se caracteriza como prógono da dominação política e econômica do território, de modo a alterar as tradições indígenas e estabelecer uma nova ordem discursiva para receber uma nova ordem política.


Nesse sentido, a obra poética de Anchieta é exemplar. Valendo-se, em seus poemas, da língua tupi e da métrica de tradição portuguesa para falar de temas e elementos da fé católica, o jesuíta criava uma retórica que não é inteiramente nem indígena nem europeia, mas uma terceira, consentânea à situação colonial (BOSI, 1999). O poeta, ao aludir a entidades da crença tupi, como Tupã, deus do trovão, e Anhaga, espírito maligno, procura criar homologia com os conceitos de Deus e Diabo, de bem e mal da moral cristã. Aqueles hábitos culturais dos indígenas considerados imorais pelos padres, como a antropofagia e a poligamia, são, então, condenados, e se insere, assim, a ideia de pecado que precisa ser aniquilado – seja pela devoção religiosa (espontânea ou forçada), seja pela violência da colonização. 


A forma violenta como o sistema colonial se impunha era contraditória em relação aos ideais de justiça social esposados, pelo menos em tese, pela Igreja Católica. No entanto, era justificável no caso de profanos, infiéis, idólatras e ateus (NEVES, 1962). A conversão do índio significava a salvação de sua alma e de seu corpo. Nos poemas, é dada voz ao índio para demonstrar sua gratidão pela salvação e seu amor por Jesus. Veja:


Conhecendo a Deus,

agora amo

meu senhor Jesus.


Antigamente, morrendo eu,

o diabo, de repente,

minha alma mataria

com o pecado.

A ele detestando,

agora amo

meu senhor Jesus.

(ANCHIETA, 2004, p. 107)


Perceba: Anchieta dá ao verso “Antigamente, morrendo eu” um sentido sobrenatural, ou seja, ele fala da morte da alma – como Deus, lá no Gêneses 3:3, empregou o verbo 'morrer' (não comereis do fruto da árvore que está no meio do jardim, senão morrereis). Contudo, a História pode dar uma interpretação literal, como o deu a Serpente no Gêneses. Antes dos missionários jesuítas, os indígenas eram dizimados. Depois dos missionários, não mais. 


O colono e o religioso podem até fazer parte do mesmo processo colonizatório, mas aos olhos das sociedades indígenas, havia uma grande diferença entre os padres e os colonos. Troca-se, então, o genocídio pela aculturação. Mas nem sempre. 


Na obra de Anchieta, quando o indígena não é representado como o convertido dócil e bem-agradecido, ele é tido como animal selvagem e inimigo da coroa. Assim é que escreve Dos feitos de Mem de Sá, poema em homenagem à vitória dos portugueses sobre a rebelião indígena que ficou conhecida como Confederação dos Tamoios. Nesse poema épico escrito em latim, Anchieta constrói uma imagem depreciativa dos índios, que se associaram aos franceses protestantes. Com efeito, Anchieta era um religioso da Contra-Reforma, em favor da Igreja católica e do império português. O índio é apenas mais uma barreira a ser transposta no esforço de expansão dessas duas instituições. 


Na visão de Anchieta, os índios são os culpados pela guerra e pela morte causada por ela, por resistirem ao avanço daqueles que representam um deus redentor, de amor e paz – os portugueses e os próprios jesuítas. Ainda na Epístola Dedicatória, Anchieta escreve: "O que dantes, furioso, semeava ruínas e guerras, aprecia os fatores de redentora paz" (ANCHIETA, 1970, grifo meu). É a velha e famigerada retórica da paz pela guerra e da guerra pela paz. 


O discurso de Anchieta é basicamente este: o índio grato pelos frutos da paz e da salvação física e espiritual é bom, enquanto o índio que resiste à dominação, à aculturação e à desapropriação é mau. Assim mesmo – em termos bem simplórios. Esse posicionamento discursivo imperou ao longo da nossa formação social e cultural, não só em relação ao indígena como também ao negro, e marca, se não toda, grande parte da produção literária do período colonial – de Anchieta, de Vieira, de Durão. Somente a partir do Romantismo essa visão será posta em cheque, ao menos parcialmente. 



REFERÊNCIAS


ANCHIETA, José de. Feitos de Mem de Sá. São Paulo: Ministério da Educação e Cultura, 1970.

ANCHIETA, José de. Lírica portuguesa e tupi. Org. Eduardo de A. Navarro. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

NEVES, Ivânia dos Santos. A outra face do Pe. José de Anchieta: Dos Feitos de Mem de Sá. Revista Movendo Ideias, Belém - PA, v. 15, n. 1, p. 29-35, jan. a jun, 2010. Disponível em: http://revistas.unama.br/index.php/Movendo-Ideias/article/view/554 


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