O amor e a vida real: uma leitura comparativa de Madame Bovary e Senhora

 


Quando a ideia de amor toma o lugar do objeto amado e se espera que o real corresponda em todos os aspectos ao ideal, experimenta-se desilusão, que é como acordar de um sonho, ao se perceber a frustrante distância entre o que é e o que deveria ser. Essa idealização do amor, uma regra no romantismo, é bastante criticada pela literatura realista, que enfatiza e escancara a realidade crua dos relacionamentos e da vida "como ela é". Uma obra expoente do realismo que retrata as tensões entre o amor e a vida real é Madame Bovary (1857). Emma Bovary, née Roualt, sonha com o amor, com o extraordinário, com viver e realizar as aventuras dos heróis e das heroínas que admira nas páginas românticas, só para ver suas fantasias pulverizadas pelas coisas comezinhas e pelo aspecto prático da vida, que nos obrigam a pisar no chão. Contra esse fatalismo e em favor de um amor capaz de superar o pragmatismo cotidiano, coloca-se Senhora (1875).

Madame Bovary

Sob o efeito da fascinação proporcionada pelos livros, Emma busca a elevação, tirar os pés do solo medíocre e provinciano em que se encontra, e busca essa elevação pelo amor romântico e casa-se com Charles, um médico pouco capaz, sem qualquer talento, que, de modo geral, fica aquém dos outros e não consegue ultrapassar ou mesmo atingir a média. Frustrada, Emma se perde na tempestade das próprias emoções e no desencanto. Conhece Léon, um jovem amável que lhe desperta o interesse, mas trava com ele não mais que amizade e se cumprimenta a si mesma por sua virtude de mulher fiel. Em seguida, quando ainda mais desiludida com seu casamento estava, entrega-se a Rodolphe, um fanfarrão que lhe promete "a única coisa bela que há sobre a terra, a origem do heroísmo": a paixão. Apaixonada, Emma decide fugir com Rodolphe para viver como sonhava, mas é abandonada por ele, que nunca pretendia se comprometer. Falta à ela força emocional. O corpo de suas emoções não tem nenhuma pele, e o baque do abandono, que não deixa de lembrar a heroína de sua desventura, é sentido com todo o paroxismo, e o resultado é o desfalecimento. Recuperada, Emma reencontra Léon, e dessa vez se entrega a ele, só para depois se entediar com sua personalidade tímida e covarde.

No decorrer disso, para financiar um estilo de vida além de seus meios, contraiu dívidas que lhe saíram do controle. Mergulha em aspirações de elegância após o baile no castelo do Marquês d'Andervilliers; caminha deslumbrada pelas ruas de Paris, imaginadas com o auxílio das revistas e jornais "de senhora". Emma então, em sua ânsia por excitação, começa a se identificar com os hábitos burgueses, confundindo-os "com a delicadeza dos sentimentos". Recorre a Rodolphe e, depois, a Léon para que a ajudassem nessa dificuldade, o que não acontece. Perdida e desesperada, encontra na morte a solução para todos os problemas. Toma arsênico e tem uma morte demorada e dolorida. Charles, já desolado com sua morte, descobre as traições. Morre pouco tempo depois, arruinado financeiramente. A filha deles, Berthe, órfã e sem meios, vai trabalhar numa fábrica de tecidos. Uma tragédia.

Senhora

Aurélia Camargo, de origem pobre, apaixona-se por um homem ambicioso chamado Fernando Seixas e acabam noivando. No entanto, Fernando rompe a relação, para noivar Adelaide Amaral, de cujo pai receberia um grande dote. Após a morte do pai de Aurélia, porém, ela recebe uma grande herança do avô (de quem ela não sabia ter sido rico), ascendendo assim na ordem social. Por ser de grande beleza, ela se torna uma grande sensação nas festas e eventos que frequenta na época. Assim, dividida entre o amor que sente e o orgulho ferido, coloca então o tio Lemos à frente de uma negociação de oferta de casamento a Fernando Seixas que inclui uma grande quantia destinada a ele. O acordo estabelece, porém, que a identidade da noiva deve permanecer em segredo até o dia seguinte ao do casamento, impedindo efetivamente o marido de saber ao certo com quem se casará. Por fim, ao saber que Aurélia é sua noiva, Fernando fica exultante, pois na verdade nunca havia deixado de amá-la realmente. Ele então abre seu coração para Aurélia e confessa seu amor por ela.

A jovem Aurélia, entretanto, em sua primeira noite juntos, deixa claro um ponto: ele havia sido "comprado" por ela para se tornar um marido que uma mulher de sua posição social deveria ter, fazendo o que ela desejasse. Eles dormem em quartos separados. Ela aproveita todas as oportunidades para criticá-lo com sarcasmo e ironia. A partir daí, Fernando se transforma e recusa o luxo que tanto desejava. Passa então a trabalhar dedicadamente e faz um negócio importante, em que arrecada um valor e devolve para Aurélia todo o dinheiro do dote. Ele então pede o divórcio. Comprovada a mudança de Fernando, Aurélia lhe mostra o seu testamento escrito no dia do casamento, onde é deixada para Fernando toda sua fortuna e é declarado o seu amor por ele. O casamento então se consuma e os dois se tornam um casal de amantes.

O amor e a vida real

O amor anda junto da admiração e verdadeiramente é difícil amar alguém e não admirá-la. O amor é depositado na imagem que se tem, ou que se cria, de uma pessoa, que se torna fiduciária desse amor, quer dizer, fica encarregada de cumprir com suas expectativas. Quando essa imagem se quebra e se desfaz, o amor fica à deriva, como um naufrágio, à procura de algo que o mantenha na superfície. Charles perde, se é que alguma vez o teve, o amor de Emma, quando fica aquém de suas expectativas, não importando quais sejam. Acontece o mesmo com Fernando, que não se demonstra nobre o suficiente para Aurélia. Esta chega a admirar, como por substituto, a pintura que mandara fazer de Fernando, pois via na imagem, e não mais nele, o semblante por que se apaixonara à primeira vista. Emma busca em outros rostos, em outras personalidades, os traços capazes de lhe despertar o amor: a amabilidade de Léon, a elegância de Rodolphe.

Mas será o amor o mais importante? Não seria a situação financeira? Emma não se matou por conta do desamor dos seus amantes, mas por causa de sua ruína financeira. Fernando escolheu Adelaide por sua fortuna. Aliás, Emma e Fernando são dois personagens muito parecidos. Ambos são atraídos para o luxo e ambos vivem além de seus meios. Fernando tem a sorte de encontrar, duas vezes, o pote de ouro que lhe permite a indulgência de tais luxos. Emma, não teve a mesma sorte. Foi enganada por Rodolphe e por seus próprios sentimentos. Sem saída, sem poder viver seus sonhos, sem encontrar aquele que fosse digno de seu amor exultante, ela vê na morte a salvação de si mesma. Fernando, por outro lado, teve a sorte de ter em Aurélia um amor obstinado, que por ele tudo faria. Fernando é transformado pelo amor de Aurélia, que o amaria mesmo na pobreza. Mas ela é rica. Sem o obstáculo da pobreza, amar fica mais fácil e leve. Possível.

Temos então nos dois romances a tensão entre o amor e as circunstâncias práticas da vida, sendo que em um ganha o amor, no outro, as circunstâncias. Não é como em Orgulho e Preconceito, em que ganham os dois.

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