As formas de representação do negro na obra de Gregório de Matos

A obra literária atribuída a Gregório de Matos (1636-1696) forma, como diz Araripe Júnior, “um quadro da vida baiana extraordinário de luz e de verdade” (1910, p. 167, apud PERES, 1967, p. 59). Esse quadro é um que satiriza instituições, classes sociais, costumes e pessoas importantes. Um aspecto da sátira de Gregório de Matos que iremos analisar é a forma de representação da pessoa negra (e mulata), apontando as relações sociais e raciais da época. 


A postura do artista em relação aos negros e principalmente às mulatas, em oposição ao modo como ele trata outras figuras de sua obra, por exemplo, a mulher branca, de origem ou traços europeus, é patente. A negra e a mulata são descritas como alguém que tenta o poeta. Tomemos um excerto do poema “Indo o poeta passear pela Ilha Cajaíba, encontrou lavando roupa a mulata Annica e lhe fez este romance”:


“Tanto deu, tanto bateu

co’a barriga, e co’as cadeiras,

que me deu a anca fendida

mil tentações de fodê-la”.


A mulher negra e a mulata são vertidas nos poemas como figuras que evocam um misto de luxúria e desprezo (BOSI, 1992, p. 107). Além disso, a colocação da figura feminina como objeto de desejo revela não apenas as relações sexuais mas também de poder entre colonizador e escravo (PERES, 1967, p. 60). Encontramos, em “Queixa-se a Bahia por seu bastante procurador, confessando que as culpas, que lhe increpam, não são suas, mas sim dos viciosos moradores que em si alverga”, no Preceito IV, a seguinte passagem:


“Oh! quantas e quantos há

De bigode fernandino,

Que até de noite às escravas

Pedem salários indignos!"


Assim, o erotismo do negro é repudiado não só por si mesmo, como no neoplatonismo, porém bem como por supostamente ser manifestação inerente ao negro, que é tido como inferior e de moral depravada. 


Cotejando a representação da mulher negra com a representação da mulher branca, essa discriminação racial fica mais evidente. O poeta descreve esse segundo tipo de musa utilizando imagens religiosas, linguagem mais erudita, entre outros recursos, que acabam por criar uma impressão diferente da donzela, uma impressão de beleza superior e intangível. Vejamos em “Pondera agora com mais atenção a formosura de d. Ângela ”:


“Não vira em minha vida a formosura,

Ouvia falar nela cada dia,

E ouvida me incitava, e me movia

A querer ver tão bela arquitetura.

Ontem a vi por minha desventura

Na cara, no bom ar, na galhardia

De uma Mulher, que em Anjo se mentia,

De um Sol, que se trajava em criatura.”


A mulher branca é despida de erotismo, enquanto a mulher negra e a mestiça são erotizadas de maneira chula. Qualquer impulso erótico deve ser sublimado quando direcionados à mulher branca, porque ela é de casta superior, uma Senhora. Por outro lado, os impulsos sexuais direcionados à mulher negra e à mulata devem ser sublimados porque ela é de casta inferior, uma escrava ou ex-escrava. Nesse sentido, Gregório de Matos satiriza aqueles que mantêm relações sexuais com negras e mestiças como forma de denunciar a degeneração moral da sociedade colonial e mercantilista. Vejamos em "Epístola ao conde do Prado":


“Ambicioso avarento,

Das próprias negras amigo

Só por fazer a gaudere

O que aos outros custa jimbo”.

Outra maneira de satirizar a moralidade da época é na representação do negro e do mulato bem sucecidos social e economicamente. Para Gregório, ressentido por não ter mais uma posição de fidalguia, apenas numa sociedade degenerada é que há lugar de prestígio para mestiços e ex-escravos. E por uma sociedade degenerada leia-se sociedade dirigida por brasileiros, não mais portugueses puros.

 

De fato, muitos mulatos foram agregados e protegidos pela Casa-Grande, ou conseguiram alcançar postos importantes na administração pública ou na hierarquia religiosa (BOSI, 1992, p. 106). Enfim, funções que dependiam de destaque, instrução e influência. Ainda que a ascensão social de mulatos não fosse tão expressiva como se verifica em séculos posteriores, isso causa ojeriza no poeta, que provinha de uma ordem social já então entrando em crise e que, por isso, perdera privilégios. Vejamos o que encontramos em “Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia”.


Muitos mulatos desavergonhados, 

Trazidos sob os pés os homens nobres,

Posta nas palmas toda a picardia.


Ainda, em “Ao padre Lourenço Ribeiro, homem pardo que foi vigário da Freguesia do Passé”: 


Um branco muito encolhido, 

um mulato muito ousado, 

um branco todo coitado, 

um canaz todo atrevido; 


Note-se que Gregório de Matos critica também o branco tímido e dócil que se deixa sobrepor pelo negro “ousado” e “atrevido”. Nessa dialética, o poeta deixa entender que o sucesso do negro e do mulato não se deve ao próprio talento e esforço do negro, mas à fraqueza do branco e mesmo à benevolência dos dirigentes da sociedade, que já neste tempo apresentavam alto grau de mestiçagem e que, por isso, eram alcunhados de “nobreza caramuru” pelo poeta. Em “Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia”, temos:

Quais são os seus doces objetos? ............................................................... Pretos. 

Tem outros bens mais maciços? ............................................................ Mestiços. 

Quais destes lhe são mais gratos? .......................................................... Mulatos. 

Dou ao demo os insensatos, 

Dou ao demo a gente asnal, 

Que estima por cabedal

Pretos, mestiços, mulatos.


O poeta deixa entender que as mazelas de que padece o corpo social e político da Bahia, que aqui pode ser metonímia para Brasil, são convenientes ao negro e ao mestiço e até mesmo causadas por eles. 


Concluindo, como colocou Bosi (1992, p. 107), a crítica de Gregório de Matos à sociedade mercantilista, imoral perante a antiga ordem dos Nobres, não é de todo motivada por um sentimento humanista, antes racista. A representação do negro e do mulato é consetânea à representação da decadência moral da colônia.


REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

MATOS, Gregório de. Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Record, 3ª Ed., 1992.

MATOS, Gregório de. Poemas Escolhidos. Seleção e organização José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

PERES, Fernando da Rocha. Negros e Mulatos em Gregório de Matos. Revista Afro-Ásia, pp. 59-75, 1967. Disponível em: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/3627


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