Literatura: lugar de sonho e memória

 C’est lui qui, malgré les épines,
L’envie et la dérision,
Marche, courbé dans vos ruines,
Ramassant la tradition.
De la tradition féconde
Sort tout ce qui couvre le monde,
Tout ce que le ciel peut bénir.
Toute idée, humaine ou divine,
Qui prend le passé pour racine,
A pour feuillage l’avenir.
(Victor Hugo, La fonction du poète).

De todas as definições ou conceituações de literatura que perfazem a fortuna teórica, a que mais me agrada, e à qual subscrevo, é a de literatura como sonho. Tocada tanto por críticos e estudiosos, a exemplo de Antonio Candido, quanto por escritores, como Fernando Pessoa, a noção de literatura como forma de sonhar responde a duas questões importantes para a teoria literária, a saber, o que é literatura e para que ela serve, pois é o sonho, na tradição de diferentes povos, um lugar de possibilidades que se nos colocam como orientações e inspirações de vida e de comunhão com os outros. A literatura, isso eu defendo, é também um lugar como esse, de conhecimento e autoconhecimento.

Ligada intimamente a esta noção de literatura como lugar de sonho está a de literatura como lugar de memória. Afinal, se nos reportarmos à tradição dos povos originários das Américas e de África, veremos que o sonho é o lugar de encontro com os antepassados, onde se recupera a memória da experiência. Já bem apontou Ailton Krenak que "sonho de verdade é quando você sente, comunica, recupera a memória da criação do mundo onde o fundamento da vida e o sentido do caminho do homem no mundo é contado para você". Sem querer profanar a sacralidade da prática xamânica do sonho, acredito que a literatura — se concebida como o conjunto de textos que guardam a tradição e a memória — pode ser um lugar de sonho onde podemos recuperar a memória do que significa ser humano e recriar o mundo, como diz Ailton Krenak:

"[A]s coisas que têm existência física, elas foram todas fundadas a partir da palavra que foi ordenando a criação do mundo [e] quando nós narramos as histórias antigas nós criamos o mundo de novo, limpamos o mundo".

A literatura, como lugar de sonho e memória, tem a capacidade de "limpar" o mundo, pois, como bem colocou a professora Sylvia Telarolli, a recuperação da memória é "uma das modalidades de resistência à reificação do homem, da arte, das relações sociais tão comuns na vida contemporânea, inclusive à avassaladora exigência da cultura do mercado". Ergo: é isso o que é e o que faz a literatura. Ela é o lugar onde podemos (re)encontrar o que já foi dito e ao que não se deu ouvido, como fala André Gide no início de Le Traité du Narcisse: "Toutes choses sont dites déjà; mais comme personne n'écoute, il faut toujours recommencer"; ela é o lugar onde podemos nos recordar de quem somos e, assim, criar paraquedas — como fala Ailton Krenak — e resistir à reificação e mercantilização do ser humano e da natureza.

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