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Mostrando postagens de agosto, 2025

Reflexões acerca da recorrência aos símiles na Ilíada

Os símiles constituem um dos recursos mais antigos e persistentes da literatura, atravessando gêneros, épocas e culturas. Mais do que um ornamento estilístico, eles funcionam como pontes cognitivas entre o mundo da experiência sensível e o universo da narrativa, oferecendo ao leitor ou ouvinte uma via de acesso àquilo que, por vezes, não pode ser expresso de maneira direta. Na Ilíada, de Homero, os símiles aparecem em profusão e desempenham papel central na construção da atmosfera épica: são eles que traduzem a violência da guerra, a força dos heróis e a inevitabilidade do destino em imagens extraídas da natureza ou do cotidiano do mundo grego arcaico.      Esse uso recorrente dos símiles, contudo, não se limita ao aspecto estético. Ele revela algo mais profundo sobre a forma de pensar de uma sociedade que, no chamado Período das Trevas, ainda se apoiava fortemente na oralidade e na experiência concreta para dar forma a ideias abstratas. Nesse sentido, a análise dos símil...

Correspondência entre Kafka e Milena

Comecei a leitura das cartas de Kafka a Milena e posso dizer que já estou apaixonado pelos dois. Só as fotografias deles já me transportaram para aquela época e foi como ver um filme. A relação de Milena Jesenská e Franz Kafka foi marcada por distância (eles só se encontraram duas vezes), idealização e impossibilidades — ingredientes indispensáveis de uma história romântica. Milena Jesenská (1896–1944) era uma jornalista, escritora e tradutora tcheca. Ela era vibrante, intensa e vivia relacionamentos amorosos conturbados. Assim a descreveu o crítico e editor Willy Haas: Ela própria às vezes dava a impressão de ser como uma nobre do século XVI ou XVII, uma personagem como aquelas que Stendhal retirava das antigas crônicas italianas e transplantava para seus romances — a Duquesa de Sanseverina ou Mathilde de La Mole: apaixonada, intrépida, fria e inteligente em suas decisões, mas imprudente na escolha dos meios quando sua paixão estava envolvida — e durante a juventude, parece que isso a...

A borboleta preta de Brás Cubas

Até onde sei, Platão foi o primeiro a associar ética e estética, avançando a ideia de que o belo leva ao bem e quem procura o bem vai atrás do belo. Desse modo, matar uma barata não parece ser um ato imoral, enquanto esmagar uma borboleta colorida seria indignante. Se não fosse assim, talvez o destino de Gregor Samsa teria sido outro. Apenas talvez, pois no capítulo XXXI, “A borboleta preta”, de Memória Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis deixa transparecer uma ideia desconcertante: não importa o contexto de coisas no mundo, o ser humano sempre há de fazer o que lhe der na telha. Assim, o bruxo do Cosme Velho faz eco a André Gide quando o autor francês, no Tratado de Narciso , demonstra como Adão, mesmo no paraíso, quebra um galho só para ter algum contraste em meio à perfeição edênica. Porque pode. As ações narradas no referido capítulo são como se seguem: Brás Cubas vê uma borboleta que adentrara em seu quarto, pousou-lhe na testa, depois no quadro de seu pai e por fim no vidro ...

palavra, viva!

certa vez, confessei uma tia minha que não lia muito e que se um livro não me cativasse nas primeiras páginas desistia dele. às vezes eu leio palavras como quem espera o trovão mas vem só o ruído de um fósforo molhado. não é culpa delas — é que há dias em que nem o céu me atravessa. é que não é toda palavra articulada que consegue transpor a crosta do meu psiquismo, que endureceu com os dias que passei sem espanto. mas ele, ainda que bem rígido como a crosta terrestre, também como ela é cheio de pequenas frestas (there is a crack in everything, that's where the light gets in - meu xará cohen), e alguns — e só alguns —escritos/escritores conseguem lançar suas flechas por essas brechas e rasgar meu interior - como quer kafka que seja a obra de arte. mesmo aquelas palavras mais líquidas, mais moles, mais alveolares, quando tocam aquela massa amorfa do pensamento e lhe dão forma, geram uma descarga que eletrifica o espírito, que fica quase sem saber como aquilo veio a ser. é por isso q...

Por que estamos aqui? Billie Eilish e Billie Marten podem responder

A pergunta "por que estamos aqui?" é bastante antiga, não é? Os antigos gregos são bem conhecidos por suas filosofias sobre o sentido da vida e sobre o que torna uma vida feliz. Fico pensando quais civilizações, além dos gregos antigos, também se colocaram essa questão. Afinal, trata-se de uma indagação universal e atemporal, não é? Ela até aparece no filme mais recente da Barbie (2023), ilustrada na canção What Was I Made For , de Billie Eilish. E justamente hoje a ouvi em uma música de outra Billie — Billie Marten: Drop Cherries , em que ela não faz a pergunta diretamente, mas afirma: "I don't know what I'm here for." Na canção de Billie Eilish, há uma tentativa de resposta, no seguinte verso: "I'm not real, just something you paid for". Isso sugere que — não é para o consumo, o ditame máximo do capitalismo, que fomos feitos. Dessa forma, podemos chegar a saber para o que não fomos feitos. Contudo, a busca e a espera continuam ("Somethin...

[Resenha] Pequenas Coisas como Estas

Com atuações impecáveis e uma narrativa minimalista, o filme nos lembra que, mesmo diante das maiores estruturas de opressão, são as pequenas ações de coragem que têm impacto significativo na vida. O filme Pequenas Coisas Como Estas (2024), dirigido por Tim Mielants e estrelado por Cillian Murphy, é uma obra de profundo impacto emocional e político. Baseado no livro homônimo de Claire Keegan, o longa transporta o espectador para a Irlanda de 1985, onde Bill Furlong, um humilde comerciante de carvão, se depara com uma realidade sombria escondida sob a aparente tranquilidade de sua comunidade: as famigeradas Lavanderias de Madalena. Com uma abordagem contida, mas profundamente expressiva, o filme retrata a vida cotidiana de um homem comum que, ao realizar entregas em um convento local, descobre as condições desumanas impostas às mulheres confinadas naquele espaço. A narrativa se desenrola de forma lenta e sutil, explorando o conflito moral do protagonista e levantando questões sobre cump...

Crítica da Crítica Platônica aos Poetas

A filosofia de Platão é uma das mais influentes da tradição ocidental, mas também uma das mais debatidas. Entre suas muitas ideias, uma das mais controversas é sua crítica aos poetas, especialmente exposta na República, onde ele argumenta que a poesia está distante da verdade e que os poetas oferecem uma ilusão de conhecimento, sem base racional ou prática. No entanto, essa posição pode ser questionada a partir de vários exemplos históricos e epistemológicos que demonstram que a literatura, a mitologia e a poesia são, de fato, fontes válidas de conhecimento. Para Platão, a poesia e outras formas artísticas são meras imitações da realidade, distanciando-se da verdade ao lidarem apenas com aparências e emoções. Ele acreditava que os poetas não possuíam conhecimento verdadeiro, pois apenas reproduziam e embelezavam experiências sensíveis sem compreender suas essências. No entanto, essa visão ignora o fato de que a literatura não apenas imita, mas também interpreta, sistematiza e, muitas v...

Um ínfimo pássaro (Tradução de "A Minor Bird", de Robert Frost)

Desejei que um passarinho fosse embora, E não cantasse em minha casa toda hora; Bati minhas mãos contra ele na porta Como alguém que não mais suporta. O defeito talvez em parte estivesse em mim. O pássaro não tem culpa de cantar assim. E certamente deve haver alguma transgressão Em querer calar qualquer canção. Original: A Minor Bird I have wished a bird would fly away, And not sing by my house all day; Have clapped my hands at him from the door When it seemed as if I could bear no more. The fault must partly have been in me. The bird was not to blame for his key. And of course there must be something wrong In wanting to silence any song. (Robert Frost)

poesia e efemeridade

Até hoje ninguém definiu a poesia (nem mesmo a literatura). O que há são definições, no plural. Porque sempre que se experimenta um momento poética, toma-se-o como metáfora para o que é poesia. Por exemplo, ontem mesmo escrevi: Poesia é olhar pra o céu E ver nas nuvens A ilha britânica Enquanto toca Belle and Sebastian No aparelho de som O momento inspirador desse poeminha foi singular e — permitam-me o pleonasmo — momentâneo como as nuvens. Mas por carregar em si serendipidade e coincidência significativa, tem a ventura de guardar no envelope da poesia a efemeridade. E talvez esteja aí a definição de poesia, que compassa a todas as outras definições vindas e vindouras: poesia é guardar efemeridades. E dentre todos os artifícios humanos tentativos de conseguir a eternidade, a poesia é a única invenção bem-sucedida. Não porque efetivamente alcança a perpetuidade: pois nada o é. Mas por a poesia ser também efêmera. Por acontecer num átimo, simultâneo ao momentâneo, a poesia se identifica...

Três anos depois (Tradução de um trecho do poema Trois ans après, de Victor Hugo)

Deus! Pudeste acreditar Que amaria, sob os céus, Tua glória a me assustar Mais que os doces olhos seus? Soubera eu tuas leis sombrias, E que ao gênio fascinado Não concedes, em tuas vias, Nem verdade nem agrado, Em vez de erguer tuas cortinas, E buscar-te, triste e puro, No seio de estrelas divinas, Ó Deus de um mundo obscuro, Seguiria eu, com graça, Sem ti, um estreito trilho, A ser um homem que passa, De mãos dadas com seu filho! Original: Ô Dieu ! vraiment, as-tu pu croire Que je préférais, sous les cieux, L'effrayant rayon de ta gloire Aux douces lueurs de ses yeux ? Si j'avais su tes lois moroses, Et qu'au même esprit enchanté Tu ne donnes point ces deux choses, Le bonheur et la vérité, Plutôt que de lever tes voiles, Et de chercher, coeur triste et pur, A te voir au fond des étoiles, Ô Dieu sombre d'un monde obscur, J'eusse aimé mieux, loin de ta face, Suivre, heureux, un étroit chemin, Et n'être qu'un homme qui passe Tenant son enfant par la main !