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Reflexões acerca da recorrência aos símiles na Ilíada

Os símiles constituem um dos recursos mais antigos e persistentes da literatura, atravessando gêneros, épocas e culturas. Mais do que um ornamento estilístico, eles funcionam como pontes cognitivas entre o mundo da experiência sensível e o universo da narrativa, oferecendo ao leitor ou ouvinte uma via de acesso àquilo que, por vezes, não pode ser expresso de maneira direta. Na Ilíada, de Homero, os símiles aparecem em profusão e desempenham papel central na construção da atmosfera épica: são eles que traduzem a violência da guerra, a força dos heróis e a inevitabilidade do destino em imagens extraídas da natureza ou do cotidiano do mundo grego arcaico.

    Esse uso recorrente dos símiles, contudo, não se limita ao aspecto estético. Ele revela algo mais profundo sobre a forma de pensar de uma sociedade que, no chamado Período das Trevas, ainda se apoiava fortemente na oralidade e na experiência concreta para dar forma a ideias abstratas. Nesse sentido, a análise dos símiles homéricos permite entrever não apenas a poética da epopeia, mas também o modo como uma cultura inteira elaborava seus conceitos fundamentais por meio de imagens sensíveis.

    É a partir dessa perspectiva que este ensaio se desenvolverá: primeiro, destacando a natureza dos símiles na literatura e, em particular, na Ilíada; depois, refletindo sobre a necessidade de recorrer a tais comparações e o que isso revela sobre o nível de abstração do pensamento grego arcaico; por fim, avaliando as vantagens e limitações de um pensamento que abstrai pelo concreto em contraste com formas mais conceituais de racionalidade.

A natureza dos símiles na literatura e na Ilíada

O símile é um dos mais antigos recursos da linguagem literária, presente em culturas distintas e em diferentes gêneros narrativos. Sua função básica é estabelecer uma comparação explícita entre dois elementos, geralmente unidos por partículas comparativas, a exemplo de “como” ou “tal qual”. Ao fazê-lo, o símile produz um deslocamento: traz para o campo do discurso poético uma imagem externa, capaz de iluminar o objeto descrito com novas tonalidades de sentido. Diferentemente da metáfora, que opera por identificação implícita, o símile preserva a distância entre os termos comparados, ressaltando tanto a semelhança quanto a diferença entre eles. Essa característica lhe confere clareza e força imagética, tornando-o particularmente eficaz em contextos nos quais a comunicação deve ser imediata e acessível.

    Na Ilíada, de Homero, os símiles aparecem em profusão e assumem um papel estruturante da narrativa épica. Muitos deles são longos, quase pequenas digressões poéticas que interrompem o fluxo da batalha para descrevê-la em termos da natureza ou da vida cotidiana. Um herói que investe contra o inimigo pode ser comparado a um leão faminto que ataca um rebanho; o avanço de um exército pode ser descrito como um incêndio que consome a floresta; a queda de guerreiros mortos pode ser associada às folhas que se desprendem das árvores no outono. Essas imagens não apenas embelezam o texto, mas também cumprem a função de tornar a violência e a grandiosidade da guerra compreensíveis a partir de experiências comuns ao público ouvinte.

    Ao mesmo tempo, a escolha dos símiles homéricos revela muito sobre o universo cultural da Grécia arcaica. As imagens vêm de três grandes domínios: a natureza selvagem (leões, touros, tempestades), o mundo rural e agrícola (campos, colheitas, rebanhos) e os fenômenos cósmicos (fogo, rios, ventos). São domínios imediatamente reconhecíveis para uma sociedade ainda fortemente vinculada à terra e à oralidade, o que reforça a ideia de que, na epopeia, o símile não é apenas recurso poético, mas também instrumento cognitivo e cultural. Ele traduz o extraordinário — a guerra dos heróis e a intervenção dos deuses — em termos do ordinário, criando uma ponte entre o mítico e o cotidiano.

A necessidade dos símiles e o pensamento concreto na Grécia arcaica

A recorrência aos símiles na Ilíada não pode ser entendida apenas como escolha estilística do poeta. Ela responde a uma necessidade própria de uma sociedade de tradição oral, na qual o pensamento abstrato ainda não se desvinculava da experiência sensível. Como observa Walter Ong, culturas orais elaboram seus conceitos de maneira fortemente vinculada a imagens concretas, pois a memória coletiva depende de fórmulas fixas e facilmente visualizáveis. Assim, o símile cumpre uma dupla função: em primeiro lugar, auxilia na retenção e transmissão da narrativa; em segundo, fornece uma chave cognitiva que permite transformar o extraordinário em algo compreensível.

    No caso da Grécia arcaica, a situação se acentua pelo contexto histórico. Após o colapso da civilização micênica, o chamado Período das Trevas (c. 1200–800 a.C.) foi marcado pelo declínio da escrita e pela centralidade da oralidade. Nessa conjuntura, a linguagem poética não era apenas arte, mas também veículo de conhecimento e de preservação cultural. Eric Havelock mostra que Homero funcionava como uma espécie de “enciclopédia oral” dos gregos, reunindo saberes éticos, religiosos e práticos em forma narrativa. Os símiles, ao traduzirem a guerra em imagens do cotidiano, tornavam a epopeia inteligível e partilhável para uma comunidade que pensava e aprendia por meio do sensível.

    Dessa forma, a necessidade de recorrer a comparações revela um nível de abstração distinto daquele que viria a se consolidar na filosofia grega posterior. Não se trata de incapacidade de pensar o abstrato, mas de um modo de pensamento que abstrai pelo concreto. A devastação de uma batalha não é expressa em termos conceituais — “aniquilação”, “destruição coletiva” — mas representada como um incêndio que avança ou como uma tempestade que arrasta tudo em seu caminho. O conceito está presente, mas se ancora na imagem sensível, que é mais imediata, comunicável e memorável.

    Assim, a profusão de símiles na Ilíada revela que a poesia homérica não apenas descreve a guerra, mas também expõe um modo de raciocínio próprio de sua cultura: um pensamento simbólico, concreto e imagético, que fazia do sensível a base para atingir o inteligível.

Vantagens e limitações do pensamento concreto em contraste com o abstrato

A análise dos símiles homéricos permite refletir sobre os méritos e as limitações de um pensamento que se estrutura a partir do concreto, em oposição ao pensamento abstrato que caracterizaria a filosofia grega posterior. Entre as vantagens, está a força comunicativa: imagens concretas, ligadas ao cotidiano e à natureza, são imediatamente compreensíveis e acessíveis, mesmo para comunidades amplas e heterogêneas. O pensamento concreto, ao transformar conceitos em símbolos visuais ou narrativos, garante não apenas a clareza da mensagem, mas também sua memorização e transmissão oral. Esse aspecto explica em parte a longevidade da Ilíada, cuja riqueza imagética atravessou séculos e permaneceu viva mesmo antes da fixação escrita do poema.

    Outro ponto positivo reside na dimensão simbólica que o pensamento concreto oferece. Um símile não se reduz à comparação literal: ele expande o sentido, convertendo elementos da experiência comum em metáforas do universal. O leão faminto, o incêndio devastador, a queda das folhas — todos ultrapassam sua materialidade imediata e condensam ideias complexas como coragem, destruição ou efemeridade da vida humana. Nesse sentido, o concreto se torna um atalho para o universal, sem a necessidade de conceitos abstratos elaborados.

    Por outro lado, há limitações evidentes. O pensamento concreto pode restringir a capacidade de análise em termos conceituais mais precisos, sobretudo quando se trata de fenômenos que não encontram correspondência imediata na experiência sensível. Enquanto o pensamento imagético é poderoso para traduzir emoções e situações perceptíveis, ele se mostra menos apto para lidar com questões abstratas de ordem lógica, metafísica ou científica. Essa limitação talvez explique por que a tradição grega, a partir do século VI a.C., buscou superar a linguagem poética como veículo principal de conhecimento, abrindo espaço para a filosofia e para um discurso mais analítico e racional.

    Assim, a comparação entre os dois modos de pensamento não deve ser vista em termos de superioridade ou inferioridade, mas de adequação histórica e cultural. O pensamento concreto, expresso nos símiles da Ilíada, foi essencial para uma sociedade de tradição oral, garantindo a preservação de saberes e valores por meio da imaginação sensível. Já o pensamento abstrato, mais característico da filosofia clássica, representou um avanço em direção à sistematização conceitual. Ambos, no entanto, compõem etapas complementares de uma mesma trajetória intelectual, mostrando que a abstração pode nascer do concreto e que a imagem sensível pode ser, em si mesma, uma forma de conceito.

Conclusão

A análise dos símiles na Ilíada mostra que sua função vai muito além da ornamentação estilística. Eles constituem a base de um modo de pensamento que, em um contexto de oralidade e de experiência concreta, permitia transformar o extraordinário da guerra heroica em imagens acessíveis ao público. Nessa perspectiva, o recurso ao símile evidencia como os gregos arcaicos abstraíam pelo concreto, convertendo fenômenos cotidianos — animais, rios, tempestades, folhas — em símbolos universais de coragem, destruição ou mortalidade.

    Além de sua função cognitiva, os símiles também imprimem à epopeia uma qualidade poética que a distingue de uma mera narrativa de batalhas. Em meio ao relato grandioso dos combates, esses momentos de comparação introduzem uma pausa descritiva que aproxima a obra da lírica: as imagens de leões, incêndios ou folhas outonais conferem ao poema uma intensidade estética e emocional que transcende a simples narração dos fatos. Nesse sentido, os símiles não apenas traduzem conceitos, mas também líricizam a epopeia, dando-lhe uma densidade poética que ajuda a explicar sua permanência ao longo dos séculos.

    Se por um lado o pensamento concreto limita a elaboração conceitual em termos abstratos, por outro oferece uma força expressiva e simbólica que não deve ser subestimada. Ao aproximar mito e experiência, cotidiano e universal, os símiles da Ilíada revelam uma forma de conhecimento que é, ao mesmo tempo, estética e cognitiva. Assim, a epopeia homérica não se reduz a um registro de feitos heroicos: ela é também um testemunho da capacidade humana de transformar o sensível em conceito e de fazer do concreto uma via de acesso ao universal — tudo isso por meio da beleza poética de suas comparações.

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