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[Resenha] Pequenas Coisas como Estas

Com atuações impecáveis e uma narrativa minimalista, o filme nos lembra que, mesmo diante das maiores estruturas de opressão, são as pequenas ações de coragem que têm impacto significativo na vida.

O filme Pequenas Coisas Como Estas (2024), dirigido por Tim Mielants e estrelado por Cillian Murphy, é uma obra de profundo impacto emocional e político. Baseado no livro homônimo de Claire Keegan, o longa transporta o espectador para a Irlanda de 1985, onde Bill Furlong, um humilde comerciante de carvão, se depara com uma realidade sombria escondida sob a aparente tranquilidade de sua comunidade: as famigeradas Lavanderias de Madalena.

Com uma abordagem contida, mas profundamente expressiva, o filme retrata a vida cotidiana de um homem comum que, ao realizar entregas em um convento local, descobre as condições desumanas impostas às mulheres confinadas naquele espaço. A narrativa se desenrola de forma lenta e sutil, explorando o conflito moral do protagonista e levantando questões sobre cumplicidade, silêncio e responsabilidade social. Outro aspecto a se notar também são os contrastes de caráter e atitude entre as personagens.

Cillian Murphy entrega uma atuação bem diferente daquelas pelas quais ficou famoso. Em contraste com a presença dominadora de Thomas Shelby ou a angústia intelectual de Oppenheimer, Bill Furlong demonstra ser um homem simples, por vezes simplório até, consciente de sua fragilidade social e, por isso, tímido. Essa impotência expressa enfatiza sua angústia de homem que se vê dividido entre a responsabilidade de proteger sua família e a necessidade de agir diante da injustiça recaída sobre outros.

Por outro lado, Emily Watson, no papel da Madre Superiora, constrói uma antagonista fria e calculista, que paira sobre Bill com uma enganosa magnificência, personificando a hipocrisia de uma instituição que utiliza a religião como ferramenta de opressão moral e exploração econômica (novidade!). Essa personagem é pura enganação. Ela intenta demonstrar magnanimidade ao fazer uma doação substancial em dinheiro para a esposa de Bill, Eileen (interpretada por Eileen Walsh), mas está evidente que é uma atitude insidiosa para ocultar seus crimes. Em contrapartida, Bill é autenticamente generoso e, mais de uma vez, compartilhou o pouco que tinha com os outros.

Isso me lembrou da história bíblica da viúva que doou tudo o que possuía, enquanto ricos doavam grandes quantias, e Jesus reconheceu a sua doação como a maior, pois ela deu de sua pobreza.

A direção de Mielants opta por uma estética sombria e introspectiva, com uma fotografia melancólica que reflete a dureza da realidade vivida pela população trabalhadora pobre e ainda sob o jugo religioso e moralista. Por sua vez, a trilha sonora discreta intensifica o peso emocional das cenas, reforçando a atmosfera de tensão e impotência.

Além disso, a câmera em dados momentos enquadra e foca as personagens, criando verdadeiros retratos delas, de modo que é transmitido também seu caráter interior. Essa técnica de focar personagens também comunica um aspecto muito importante do filme: a dúvida que Bill tem sobre que caminho tomar no tocante às meninas do convento. Nesse sentido, sua esposa é a voz que desencoraja qualquer atitude por parte de Bill para ajudar as meninas. Ela prefere não colocar em jogo o frágil conforto que eles conseguiram nem as boas perspectivas que aguardam as cinco filhas. Nesse momento, a câmera tem nela o seu foco, enquanto Cillian permanece ao fundo, desfocado.

Por esse motivo, o filme provoca reflexões incômodas: até que ponto somos responsáveis por denunciar injustiças quando vivemos em uma sociedade que incentiva o silêncio? Como a história dessas instituições ainda ressoa no presente, especialmente em questões de gênero e poder? Que mudanças efetivas estão ao alcance de um só indivíduo?

Pequenas Coisas Como Estas é um drama histórico, mas, como a história insiste em se fazer presente, o filme é um chamado à consciência coletiva hoje. Ainda hoje vemos notícias de meninas que são agredidas pelos pais e até expulsas de casa por iniciarem um vida sexual ou engravidarem, sob a justificação de tais atos serem vistos como imorais e impuros e uma desonra para a menina e para a família dela.

Com a cena final, o filme mostra que não é preciso heroísmo, mas simplesmente empatia com a dor do outro. E empatia Bill Furlong tem de sobra, ele mesmo sendo filho de uma moça que foi expulsa de casa por engravidar fora das convenções sociais e religiosas. Assim, o filme nos lembra que, mesmo diante das maiores estruturas de opressão, são as pequenas ações de coragem que podem ter impacto significativo na vida das pessoas. E o mais importante: é preciso estar atento e forte. Stay woke!

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