O Eu e o Outro
Em texto anterior, terminei dizendo que o sentido da vida é o outro. Preciso desenvolver.
Desde que me entendo por gente, ou seja, desde que alcancei certo nível de conhecimento (teórico, prático ou intuitivo), eu sigo a premissa ética que haveria depois de encontrar em dois versos do Inferno, de Dante: "Temer si dee di sole quelle cose / c’ hanno potenza di fare altrui male" (Dante, Inferno, Canto II, v. 88-89). Tema apenas aquilo que pode causar mal ao outro. Meus escrúpulos e cuidados têm como base isso.
Lembro-me de pelo menos dois episódios da infância que me revelam essa preocupação moral inconsciente, instalada. Foi uma certa vez, eu havia surrupiado alguns brinquedos do meu primo. Os pais dele eram separados, e ele dividia seu tempo entre a casa do pai e da mãe. Na casa do pai, perto da minha, ele deixava uns bonecos na prateleira, só como enfeite, praticamente, e, então, eu pensei comigo (veja só como a razão nem sempre é usada para o bem): "ele não 'tá aqui e nem 'tá usando, vou levar pra mim". Na minha cabeça, não havia nada de errado; pelo contrário, era tudo muito justo. Mas o que me pegou foi ver meu primo, quem eu amo, consternado ao descobrir que faltava o que lhe era precioso. Fiquei envergonhado e triste. E aquilo me marcou.
Outro episódio foi com minha mãe. Eu e um amiguinho da rua estávamos brincando de nos esconder dos adultos. Ninguém podia nos ver, mesmo que nos chamassem muito, como aconteceu. Minha mãe me chamou, me procurou, e eu escondido, muito satisfeito com minha proeza de não ser descoberto. Foi só quando senti na voz dela o desespero, que tudo aquilo perdeu a graça. Saí imediatamente do esconderijo, de novo envergonhado e triste. E também aquilo me marcou.
O outro, então, tornou-se o norte que direciona ou reconduz minhas ações e aspirações. Devo admitir que, muitas e muitas vezes, em detrimento de mim mesmo. E essa luta dentro de mim entre o eu e o outro, descobri que não acontecia apenas dentro de mim. Na verdade, a história da cultura humana (literatura, música, artes plásticas) mostra a humanidade se alternando entre a coletividade e a individualidade. Tudo que o ser humano parece fazer é tentar navegar o entremeio dessas duas realidades.
Mas há exceções. Houve quem percebesse que, embora haja entre 0 e 1 uma infinidade de números, uma nuança infinita, ainda assim, entre 1 e 0 há uma unidade. Se não me engano, o primeiro, de que se tem registro, a esposar essa ideia foi Parmênides, com sua teoria do Um. Mas que o outro é eu e eu sou o outro é uma noção recorrente na história do pensamento.
De certo, existe algo de paradoxal nisso, mas é possível reconciliar os contrários. Vejamos:
Os filósofos antigos, definindo a verdadeira amizade, qual naquele tempo era, ou qual devia ser, disseram: Amicus est alter ego: O amigo é outro eu. Logo enquanto o amigo é eu, ego; eu e ele somos um: e enquanto ele é outro, alter: ele e eu somos dous, mas ambos os mesmos. (Vieira, Sermão XIV, c. iv).
Ou, ainda, nesse excerto de poema atribuído a Rumi:
Em cada coração há uma
janela para outros corações.
Eles não estão separados,
como dois corpos.
Mas, assim como duas lâmpadas
que não estão juntas,
Sua luz se une num só feixe.
Na verdade, Rumi é bem mais radical, e chega a declarar: "somos uma só alma, tu e eu. Nos mostramos e nos escondemos tu em mim, eu em ti. Eis aqui o sentido profundo de minha relação contigo, porque não existe, entre tu e eu, nem eu, nem tu".
No final das contas, não se trata de definir a equação como (i) outro > eu, ou (ii) eu > outro, mas (iii) eu + outro. Não se trata, portanto, nem de anular a si mesmo, nem de anular o outro ("nem eu, nem tu"), mas de afirmar a relação dialógica e dialética ("entre tu e eu"). Se não houver essa afirmação, mas o anulamento de uma das partes, ou seja, se um dos lados não segura a sua ponta (doesn't hold one's end of the bargain), tudo desmorona.
Infelizmente, como eu disse no texto anterior, o que há é o culto do eu, mesmo quando esse eu se coloca a "serviço" do outro. No novo filme da Barbie, que não vi, mas li resenhas, o Ken colocou toda sua identidade na Barbie e, no final, não sabia quem era e parte em busca de si. Por isso coloquei a palavra serviço entre aspas: porque, nesse caso, o outro estava a serviço do eu, isto é, estava ali para tapar o buraco, para ficar no lugar que o eu não estava disposto a ocupar, para ser o que não consegue ser. Com efeito, o eu e o outro são dois elementos imprescindíveis. Se um falta, falta tudo, e, nesse sentido, vivemos na sociedade da falta.
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