Disciplina, produtividade e culto do eu

  No livro A sociedade do cansaço,  Byung-Chul Han afirma que "A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar [de Foucault], mas uma sociedade de desempenho". Para o filósofo coreano, no lugar da proibição e da disciplina, entram possibilidade e produtividade, e isso faz a configuração social ser diferente. De fato, é. Mas vejo que existe algo de comum, subjacente, que é o culto do eu

Seja na sociedade de Foucault, seja na de Byung-Chul, obedecer a um regime disciplinar ou dedicar-se a um projeto pressupõem um sentimento de recompensa individual. A obediência, por um lado, garante ao indivíduo não ser posto naqueles "muros das instituições disciplinares, que delimitam os espaços entre o normal e o anormal"; por outro, coloca-o como um exemplo a ser seguido e admirado, ou seja, proporciona um ativo social, digamos assim. 

É psicanálise básica. Se é verdade que a formação psíquica de uma pessoa começa na infância e é moldada pelos pais, então não é absurdo conjecturar que o adulto pensa mais ou menos como a criança, que, para receber a aprovação dos pais, deixa de fazer algo proibido por eles. Na idade adulta, em vez dos pais, os inquisidores agora são o chefe, os amigos, o cônjuge e a sociedade em geral. Assim, fazer o "certo" é uma questão de popularidade.

A iniciativa, por sua vez, promete -- embora raramente cumpra -- enriquecimento; e ser rico, hoje mais que nunca, vale socialmente mais que ser um "cidadão de bem". Não à toa, muitos gurus da direita mundial ensinam seus seguidores (muitos deles, homens solitários e ressentidos, pejorativamente chamados incels) a ser produtivos. "Se você for produtivo, não será mais solitário". Note que só falei dos homens, porque, para esses ideólogos, isso só é valioso para homens, e o valor da mulher está em ser esposa e mãe. Mas isso é outro assunto. De modo geral, é popular ser um indivíduo produtivo .

Em suma, o culto do eu é o fundamento comum dessas duas sociedades, desses dois modos de vida, e está, na verdade, enraizado na psicologia humana desde muito (vide o mito de Narciso). Não deu muito certo para o semideus grego. Porque o sentido da vida é o outro.


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