Tragédia e superação em Iracema






Indianismo, na literatura brasileira, especificamente no romantismo, é sinônimo de nacionalismo. Se no romantismo europeu o heroísmo se encontrava nos exemplos dos cavaleiros medievais e o cenário era o dos castelos, no Brasil, os escritores românticos tomaram como heróis os indígenas cercados por uma natureza virgem, intocada. Assim, o índio não é visto mais como um selvagem bárbaro e cruel, como é patente em Santa Rita Durão, por exemplo. O índio é, na verdade, exaltado por sua força e coragem e por seu sentimento de honradez, elementos valorizados no código dos cavaleiros medievais. Além disso, o índio não é tido como o gentio totalmente avesso aos preceitos cristãos, mas como tendo todas as qualidades de um cristão, exceto o batismo – ao modo dos que Dante diz se encontrem no limbo, pois “faltou-lhes o batismo", embora tenham realizado boas obras. Exemplo disso é Peri – um fidalgo em corpo de selvagem –, de O Guarani; e Poti – irmão de coração do cristão Martim –, de Iracema


Iracema, obra de José de Alencar publicada em 1865, é com certeza o expoente máximo do indianismo na literatura brasileira, pois condensa todos os caracteres considerados pelos românticos como definidores da identidade brasileira: o índio, a natureza, o cristianismo, o antilusitanismo. Esse último aspecto – o do antilusitanismo – pode parecer estranho, uma vez que muitos escritores românticos, inclusive o próprio Alencar, beberam da fonte da cultura e das letras portuguesas e europeias. No entanto, nota-se, em Iracema e em outras obras, a preocupação em expressar uma realidade tipicamente brasileira através de um modo de escrever que procura refletir o espírito do nosso povo, seu vocabulário e sua maneira de falar – ainda que essa maneira fosse imaginada e inventada, no caso da linguagem indígena. Alencar tinha a língua brasileira tão em conta que comprava verdadeiras brigas com portugueses que atacavam o modo “errado” do português brasileiro. 


Nas Cartas sobre a Confederação dos Tamoyos, Alencar em certa altura declarou que “as letras devem ter o mesmo destino que a política”. Com isso, ele quis dizer que as letras brasileiras precisavam de uma declaração de independência, como aconteceu na administração política. Em outras palavras, precisava-se criar um imaginário nacional. É nesse contexto e com vistas a isso que José de Alencar publica suas obras. Ele teve, e alcançou, esse projeto megalomaníaco de criar uma literatura que retratasse integralmente o Brasil. Para tanto, escreveu romances e peças urbanas, regionalistas e indianistas, de modo que ilustrassem, conjuntamente, o Brasil de norte a sul, de leste a oeste. Mas, o indianismo, em Alencar, ocupa posição de destaque e, com efeito, é a pedra chave (Schlussstein/keystone) de todo o arco da literatura nacional que Alencar ambicionou construir, porque o escritor cearense tinha a consciência de que sem o indígena o Brasil não tem passado e, por isso, nem história. Não à toa, o primeiro romance de grande importância nacional é O Guarani, publicado em 1857, um ano após as Cartas


Mas se O Guarani foi a primeira obra desse projeto, Iracema há de ser a central (central até mesmo entre as obras indianistas, O Guarani e Ubirajara). Nesse poema em prosa, José de Alencar traz a história de Iracema, índia tabajara que se apaixona por Martim Soares Moreno – um personagem histórico –, português aliado aos potiguaras, povo inimigo dos tabajaras, levando-a a trair o segredo da jurema e lutar contra o seu próprio povo para viver ao lado do amado. A relação do casal serviria de alegoria para o encontro entre as culturas primitiva e europeia que se deu a partir de 1500. Da junção dos dois – Iracema e Martim; Indígena e Europeu – surge a nação brasileira, representada pelo filho do casal, Moacir, o filho da dor. Só esse fato – de nomear o primeiro brasileiro como filho da dor – já serve para contradizer quem diga que Alencar exalta a decimação do povo indígena. Pelo contrário, o poema é todo perpassado por um tom melancólico em decorrência da perda: “tudo passa sobre a terra”.


Nas Cartas, Alencar já expressara essa melancolia, quando questionava: “como se chamará a saudade que se tem das ilusões perdidas que por muito tempo encantou nossa existência, a nostalgia que sente o homem longe do mundo que sonhou?” (1856, p. 48). Talvez Iracema seja uma resposta para essa pergunta. Talvez o imaginário nacional seja fundado e sustentado pela melancolia – que, diga-se de passagem, perpassa outros romances e peças alencarinos, como Lucíola e Mãe. A tragédia está na memória e é muitas vezes lembrada.

“Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara.

Muitas vezes ia sentar-se naquelas doces areias, para cismar e acalentar no peito a agra saudade.”

(ALENCAR, 2017, p. 76)


No entanto, Alencar não pára na melancolia. Como um bom idealista, ele imagina um futuro e como esse futuro deve ser, ou foi, construído.


“Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem.”

(Ibidem)


Em suma: Alencar, em seu projeto nacional, que pressupõe distanciamento da metrópole, voltou seus olhos, como outros escritores românticos, para o Índio, mas para um Índio que ficou no passado e mitificado, pois, em sua visão, a presença do Índio desapareceu: “A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema” (2017, p. 77). A violência do encontro entre culturas não tem como ser negada, mas tem como ser superada, e a superação passa pela figuração romântica e mítica da história como forma de sublimação da dor. Iracema (1865) faz em poema o que Moema (1886) faz em pintura: reveste a violência crua com a beleza da dor proporcionada pela arte.




REFERÊNCIAS


Alencar, José de. Iracema. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2 Ed., 2017.

Alencar, José de. Cartas sobre a Confederação dos Tamoyos. Rio de Janeiro: Empreza Typ. Nacional do Diario, 1856. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242822 


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