Iracema e a figuração de um imaginário nacional
No enredo, o encontro entre Iracema e Martim é arrebatador à primeira vista. Ao avistar o explorador Martim, a reação de Iracema é desferir-lhe uma flechada. Martim desiste de atacar a índia assim que põe os olhos nela. Iracema, por sua vez, parece ter atirado a flecha por puro reflexo, pois logo depois se arrepende do gesto e salva o estrangeiro, levando-o até sua aldeia. Martim é recolhido à aldeia pelo pajé Araquém, pai de Iracema, e apresenta-se a ele como um aliado de seus inimigos, os potiguaras, e que se perdera durante uma caçada. Ainda assim, o pajé o trata com grande hospitalidade.
"Bem vieste. O estrangeiro é senhor na cabana de Araquém. Os tabajaras têm mil guerreiros para defendê-lo, e mulheres sem conta para servi-lo. Dize, e todos te obedecerão" (ALENCAR, 2017, p. 12).
No entanto, a única mulher fora de alcance é a que Martim deseja: Iracema, a virgem guardiã do segredo da Jurema. Proibida, portanto. Mas, Iracema, por amor a Martim, abandona família, povo, religião e seu deus e se une ao português e parte com ele. Aparentemente, começa aí o idílio, mas é, na verdade, o início da tragédia. A tribo tabajara é dizimada, Iracema definha no correr do enredo até expirar ao dar luz ao filho de Martim, Moacir.
“Iracema não se ergueu mais da rede onde a pousaram os aflitos braços de Martim. O terno esposo, em que o amor renascera com o júbilo paterno, a cercou de carícias que encheram sua alma de alegria, mas não a puderam tornar à vida: o estame de sua flor se rompera” (ALENCAR, 2017, p. 74).
Em Dialética da Colonização, no capítulo Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar, o saudoso professor Alfredo Bosi tece uma lúcida análise crítica sobre o indianismo alencarino, que ele caracteriza como sendo pesadamente ideológico enquanto interpretação do processo colonial (BOSI, 1999, p. 179). Se pudermos considerar as obras indianistas de Alencar como um esforço em ficcionalizar a narrativa do encontro aplicando, especialmente em Iracema, ao contato entre portugueses e indígenas uma dimensão a um só tempo trágica e amenizada, então podemos afirmar que as obras do escritor cearense contribuíram para fabricar uma interpretação do Brasil que convinha às elites políticas e econômicas. Primeiro, porque a dimensão trágica, ou seja, a representação do genocídio dos indígenas os reconhece como “raça extinta” e, portanto, fora do jogo. Segundo, porque a dimensão amenizadora, caracterizada pela resignação do “tudo passa sobre a terra”, justifica a extinção. É como se a “meia dúzia” de letrados, em sua maioria da elite, lesse Iracema com um dó no coração cuja única consequência é apenas um suspiro de aceitação, ainda que triste.
Além disso, tem-se, em Iracema e também n’O Guarani, a presença do discurso cristão, que compõe a legitimação da assimilação dos povos indígenas para o bem da nação. "Deviam ter ambos um só deus, como tinham um só coração" (ALENCAR, 2017, p. 76). Em outras palavras, o discurso religioso do “Deus verdadeiro” é uma espécie de “licença para matar”, culturalmente ou fisicamente, pois a formação da nova identidade exige que a antiga se sacrifique. Tudo isso com vistas a uma grande conciliação nacional, entre índios e brancos, sim, mas sobretudo entre os fazendeiros e o poder central. Assim, os povos indígenas são sepultados também simbolicamente, no passado histórico, para dar lugar à civilização da Religião e do Estado.
Dessa forma, Alencar dá continuidade a uma política literária de afirmação programática da identidade nacional por meio da literatura, iniciada e encabeçada pelos grandes escritores românticos antes dele, como Gonçalves Dias, e, assim, integra o quadro dos intelectuais que formavam a Intelligentsia do país recém independente. Portanto, a ficção romântica e indianista de Alencar é concebida tanto como figuração de um imaginário nacional já existente quanto como criação, ou, antes, expansão desse projeto de modulação da sociedade, da cultura e das políticas de Estado.
Referências
ALENCAR, José de. Iracema. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2 Ed., 2017. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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