Iracema e a barbárie açucarada


Com a Independência, em 1822, as instituições públicas e políticas do Brasil, antes, pelo menos desde 1808, lotadas de portugueses, passaram a ser ocupadas por brasileiros, quer dizer, aqueles com vínculos socioeconômicos e culturais ao solo brasileiro. Com a abdicação de D. Pedro I e o início do período regencial, o comando do país não estava mais nas mãos de um português, mas de brasileiros. Concomitante a esse movimento de afirmação política, crescia o movimento de afirmação identitária, que pressupõe, naturalmente, buscar em si o que há de diferente em relação ao Outro, que, no nosso caso, é sobretudo o português, mas também o francês, o italiano, o alemão, enfim, o europeu; mas envolve também o reconhecimento e a asseveração de heranças culturais, como naturalmente um(a) filho(a) herda os genes dos progenitores. Ocorre, então, um duplo movimento de rejeição e adoção, às vezes de um mesmo elemento – assim é que é possível rejeitar a colonização ao mesmo tempo que se mantém o domínio latifundiário.


Esse duplo movimento acaba por criar uma espécie de esquizofrenia, quer dizer, uma dissociação da ação e do pensamento. É preciso, então, criar uma ficção (literalmente) que sirva de conciliação entre os paradoxos e contradições da nação nascente – é preciso criar um imaginário nacional. Nesse sentido, a estética romântica, com seu apreço pelo remoto no tempo e no espaço que justificam e explicam o nacionalismo e sentimentalismo artificiais, é como uma mão na roda. Se as nações europeias buscaram na idade média a origem de suas tradições, a nova nação brasileira foi buscar no índio e na natureza a matéria que formou, a partir do português, o povo brasileiro. Veja que, embora a ideia de continuidade entre passado, presente e futuro seja aspecto fundamental do nacionalismo romântico tanto na europa como no Brasil, e, por um lado, o francês, por exemplo, seja francês desde sempre, o brasileiro é brasileiro somente depois do amálgama entre duas culturas. 


É com esse nervo – o amálgama entre duas culturas – que Alencar constrói Iracema (1865). O escritor cearense, com essa que pode ser considerada sua magum opus, procurou realizar a profecia de Alexandre Herculano de uma nacionalidade original, transfusão de duas naturezas, a lusa e a americana – “o sangue e a luz” (ALENCAR, 1872). Com efeito, Moacir, filho de Iracema e Martim, não é nem português nem índio: é brasileiro, que se nutriu do sangue de Iracema/America e da luz europeia e que, no entanto, ou, por isso mesmo, é sempre estrangeiro na própria pátria – “o primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?” (ALENCAR, 2017). Essa mestiçagem se apercebe também no hibridismo da forma e da linguagem da obra. A criação de uma linguagem híbrida, mesmo edênica, embora despida de toda pretensão de fidelidade filológica, atendia, com liberdade e invenção, ao problema premente de fundar a língua literária nacional.


Destarte, o romance/poema Iracema se insere na deliberada missão intelectual que Alencar se atribuiu, a de realizar o projeto literário de construção da nova nação, saída de longo mergulho colonial, onde tudo estava por se fazer. Era preciso criar e unificar a língua e a memória coletiva de modo a sustentar uma ideia de nação, que, sabemos, sofreu grandes perigos de desintegração pelas sucessivas revoluções regionais. Alencar, então, se propôs a criar uma obra que fosse como uma lanterna cuja luz se distribuísse equitativamente por todo o Brasil, produzindo um efeito unificador. Tendo por rumo seu projeto nacionalista, buscou elaborar a saga da nossa formação como nação e povo, que haveria, naturalmente, de começar pelo momento de seu nascimento – o encontro entre Iracema e Martim, natureza e civilização. 


Esse encontro se dá primeiramente, quase de relance, pelo conflito, mas logo cede lugar ao amor. Iracema ao avistar Martim se assusta e quase o alveja com uma flecha. No entanto, logo nutre amor e desejo pelo forasteiro e ele, por ela. A união dos dois tem por efeito a morte da tribo dos tabajaras. Veja como Alencar concebe a devastação de todo um povo como imprescindível para o surgimento de um novo – o mesmo se verifica em O Guarani (1857). Diferentemente do romance de 1857, o de 1865 reconhece a existência e insistência do índio, o qual deve ser extinto ou assimilado: “Martim e Camarão partiram para as margens do Mearim a castigar o feroz tupinambá e expulsar o branco tapuia” (ALENCAR, 2017). O índio, que teimava em existir, tinha duas opções, ser um Poti ou um Irapuã. Veja que é o mesmo pensamento de Anchieta, e portanto colonizatório: ou o índio se converte ou será castigado. Ou seja: como dito no início: Alencar rejeita a colonização ao mesmo tempo que defende o domínio latifundiário. 


Não se pode esquecer que seguida a Lei de Terras (1850), consolidando o poder e o domínio dos latifundiários, permitiu-se que índios (assim como sertanejos e pequenos proprietários) fossem desapropriados de suas áreas tradicionais e realocados em espaços onde estariam bem mais sujeitos ao controle social e econômico (qualquer semelhança com o presente não é mera coincidência). A desapropriação e a assimilação dos índios é coerente com a visão de nação que Alencar concebia – uma nação de latifúndios (BOSI, 1999, p. 219). 


Para concluir – Mário de Alencar, filho do escritor cearense, em seu curto ensaio, José de Alencar, o escritor e o político, lhe traça um retrato de duas faces: a do escritor, marcada pela imaginação, pelo sentimento e pela fantasia; e a do político, que age segundo a razão, a realidade e a prudência. Essas duas faces uniam-se por um traço comum: a índole, a alma brasileira (ALENCAR, 1965). Em Iracema há esse traço comum, que se tornou o imaginário nacional: a política exploratória encapsulada pelo sentimentalismo para ser palatável. A barbárie sugar coated.



REFERÊNCIAS


ALENCAR, José de. Sonhos d’ouro. Rio de Janeiro: [s.n.], 1872.

________________. Iracema. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2 Ed., 2017.

ALENCAR, Mário de. Ficção completa e outros escritos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1965.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.


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