Iracema e a rosa do Brasil

Até o Arcadismo, as atividades literária, em particular, e intelectual, no geral, estavam, mesmo na expressão da realidade local, aferradas aos sistemas expressivos forjados na Europa. Embora ainda se seguisse o exemplo dos escritores de países europeus onde surgiu o Romantismo, com a Independência política, essa tendência sofre uma guinada e se experimenta uma ruptura substancial com os modelos europeus. Inicia-se, então, um movimento de nacionalismo literário que empreendia conceber ou recuperar um ideário que pudesse representar a nação recém criada, de modo a consolidar a Independência. Verifica-se, portanto, o desejo de aplicação social da literatura, que teria, e teve, papel essencial na construção do novo país. Ao mesmo tempo, o movimento dos reformadores das letras tinha o objetivo de dotar o Brasil de uma literatura à altura das literaturas das nações europeias, consideradas modelos de civilização, onde a estética romântica vicejava. Assim, o movimento de renovação literária se constitui de dois elementos básicos: o nacionalismo e o romantismo propriamente dito.


Foi a combinação perfeita. Na Europa, quando as formas e temas do neoclassicismo já se mostravam insuficientes para expressar o “despertar das nacionalidades” que se deu após as invasões  napoleônicas, o nacionalismo encontrou aliado decisivo na estética romântica, com seu apreço às tradições nacionais, ao culto da história, ao sentimento vivo e à linguagem expressiva e evocativa. Desse modo, nacionalismo e romantismo deram fruto a uma literatura infundida de exaltação afetiva do que é próprio, das paisagens e eventos históricos de relevância nacional. No Brasil, o modelo estético ainda era aquele que vinha de Portugal, Espanha, França, Itália, Inglaterra e Alemanha. Contudo, o tratamento dos temas universais do romantismo – a nostalgia, o exotismo, o cristianismo, o patriotismo – era ligado ao que fosse particularmente local, o qual os primeiros reformadores avistaram na tradição indianista de Basílio da Gama e de Santa Rita Durão, precursores ou anunciadores, com o nativismo característico de suas obras, do nacionalismo literário.


O indianismo é a primeira das três fases em que a historiografia tradicional dividiu o romantismo brasileiro. Sendo a primeira, é a mais fundamental, pois foi a que recuperou, à maneira da tradição folclórica dos germanos e dos celtas, o passado histórico, embora menos real que fabulado, como forma de desenhar os traços do que seria o Brasil. Essa recuperação da história era praxe na literatura romântica europeia, e se não tivemos os castelos e os cavaleiros da idade média, tivemos os índios e as florestas tropicais. Diga-se que, contudo, o índio é tido como algo do passado, superado, transformado, transfundido do sangue português, branco, europeu, cristão. O índio “puro” morre para dar lugar ao brasileiro; o índio cristianizado sobrevive; o índio selvagem, rebelde, é dizimado. Essa ideologia é como um leitmotiv do indianismo brasileiro, cujo gérmen se encontra em Anchieta, em Vieira, em Basílio da Gama, em Santa Rita Durão e vai verdejar em Gonçalves de Magalhães, em Couto de Magalhães, em Lourenço Amazonas, em Gonçalves Dias, em José de Alencar. Todos reconhecem a violência da empresa colonizadora, mas apaziguam os ânimos ao mostrar que tudo será resolvido com a sacralização do solo em que se finca a cruz do cristianismo e o que o Ocidente considera como civilização, como progresso. 


Gonçalves Dias foi o maior do indianismo brasileiro, pois foi o que o consolidou no imaginário da nação daquele tempo (CANDIDO, 2000). Mas é José de Alencar o que aparece, hoje, como o maior, com sua obra-prima, Iracema (1865). Essa obra foi praticamente sacralizada por numerosas edições sucessivas até hoje e por sua adoção nos currículos escolares; e inumeráveis crianças do Brasil passaram a portar nomes de personagens e índios inventados por Alencar. Sendo assim, ainda figura e dissemina o mesmo imaginário colonial-imperial que tem o índio como “raça extinta” ou assimilada. Tem-se aí a origem da ideologia repugnante proferida pelo atual chefe do executivo e compartilhada por uma “elite” latifundiária atrasada.


A história de Iracema é já bem conhecida. Ela pode ser lida como uma lenda ou como um romance (ASSIS, 1994), mas seja como for, ela é “pesadamente ideológica como interpretação do processo colonial” (BOSI, 1999, p. 179). Se fizermos um pequeno exercício de literatura comparada entre Norma, de Vincenzo Bellini, e Iracema, veremos que, enquanto o compositor italiano se coloca do lado dos gauleses que sofrem com a ocupação romana, o escritor cearense fica do lado dos invasores portugueses. Isso revela uma certa incongruência do romantismo brasileiro com o europeu, pois, se Bellini parece reforçar como a legítima ancestralidade não a cultura romana, mas a celta – indígena, em certo sentido –, Alencar faz o oposto e figura como a verdadeira herança cultural do Brasil a religião cristã, que infundiu a terra e o povo primitivo como a água preenche um vaso vazio. A rosa do Brasil assim pôde florescer e vicejar.


Referências

ASSIS, Machado de. José de Alencar: Iracema. Em: ______. Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, vol. 2, 2000.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.



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