A retórica humanista-cristã, os interesses coloniais e a figuração do negro escravizado no sermão XIV de Pe. Antônio Vieira

O indígena e o negro escravizado sempre foram, ao longo do processo brasileiro de colonização, objeto tanto de contenda quanto de acordo entre o projeto colonizatório e o projeto evangelizador. Como bem afirmou Alfredo Bosi, a linguagem humanista e a linguagem dos interesses agro mercantis, embora contraditórias entre si em diversos pontos, muitas vezes se tangenciam na produção literária do período colonial (BOSI, 1992, p. 37). Neste breve texto, propomo-nos a discorrer sobre a pacificação entre a retórica humanista-cristã e a retórica dos interesses coloniais e a figuração do negro escravizado no sermão XIV do Padre Antônio Vieira (1608-1697).


A maneira como Vieira pinta o negro em seus sermões coaduna com a maneira como a empresa colinial o quer: resignado e resiliente. No sermão XIV, proferido aos escravos de um engenho – “doce inferno” – da região do Recôncavo Baiano, Vieira aproxima a condição do escravo ao calvário de Jesus Cristo e exorta os negros a terem fé na salvação que advém da cruz.




Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado: Imitatoribus Christi crucifixi - porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz e em toda a sua paixão. (...) A Paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós mal-tratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio. (VIEIRA, Sermão XIV, c. 7). 


Também como Jesus, Vieira professa que os negros são filhos da Virgem Maria, que os escolheu dentre tantos de tantas nações, para que fossem resgatados do paganismo e acolhidos no seio da Igreja, por meio de batismo. 


assim a Mãe de Deus, antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade e esta vossa devoção, vos escolheu de entre tantos outros de tantas e tão diferentes nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá, como vossos pais, vos não perdêsseis; e cá, como filhos seus, vos salvásseis. (VIEIRA, Sermão XIV, c. 5)


Os negros são filhos também de Coré, que quer dizer ‘Calvário’, ou seja, são filhos do Calvário, filhos da paixão de Cristo (VIEIRA, Sermão XIV, c. 5). Vieira, então, os exorta à oração em meio aos tormentos da labuta no engenho.


E, verdadeiramente, quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes; (...) os etíopes ou ciclopes banhados em suor, tão negros como robustos, que soministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam; (...) o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo, sem momento de tréguas nem de descanso; (...). Mas, se entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se converterá em paraíso, o ruído em harmonia celestial, e os homens, posto que pretos, em anjos. (VIEIRA, Sermão XIV, c. 8)


Por força do batismo e do calvário, os negros escravizados e arrastados para a américa brasileira não teriam o mesmo destino de seus pais, que, embora fossem livres, eram gentios e, por isso, condenados: “Como diz logo o texto sagrado que não morrerem e perecerem os filhos de Coré, quando morreu e pereceu seu pai” (VIEIRA, Sermão XIV, c. 6). Assim, os negros e a transmigração atlântica de escravizados são retratados como partícipes do mistério da missão salvívica de Jesus Cristo, que veio para redimir a humanidade.


Intencionalmente ou não, Vieira justifica a empresa colonial na escravização e no desterramento do africano, que em sua terra é gentio, mas na nova terra, paradisíaca e colonial, pode obter a salvação por razão do batismo. Quer dizer, o tráfico negreiro foi lucrativo não apenas para a empresa colonial e para a empreitada cristã – levar o evangelho aos confins da Terra e converter o maior número possível de almas à fé em Jesus Cristo –; ela foi também benéfica ao próprio gentio negro, a quem foi dada a chance de salvação. Portanto, o jovem noviço, no sermão XIV do Rosário, pregado aos escravos, busca promover um triângulo de resistência à escravidão, que se baseia na fé, na passividade e na aceitação de sua condição, porque ela faz parte do projeto salvívico de Deus.


Aqui, enseja citar Bosi, quando fala da moral da cruz-para-os-outro:

 

“A cruz, que humanizara o Redentor e hipostasiara a oblação de Jesus na pena do cativo, acaba sendo interpretada como sinal de um sacrifício válido em si mesmo, propiciatório por si mesmo, em aberta oposição a todo o relato evangélico, que acusa a farsa do julgamento, a violência da sentença, a hipocrisia dos fariseus, a impiedade dos saduceus, a boçalidade da massa exigindo a crucifixão do inocente, enfim a covardia de Pilatos ao entregar à fúria dos sacerdotes e dos esbirros um homem de quem dissera não ter nele encontrado culpa alguma” (BOSI, 1992, p. 148).

 

Assim, ainda que se pudesse dizer que a intenção do Padre Antônio Vieira era consolar os negros escravizados e aliviar o fardo deles, pintando-os como partícipes do Mistério da Salvação, ele acaba por servir à ordem mercantil e à boçalidade desta ao legitimar a espoliação do trabalho humano. 




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