A escravidão do negro nos sermões do Padre Antônio Vieira
Antônio Vieira nasceu em Lisboa, na época da União Ibérica – união das coroas de Portugal e Espanha, nações pioneiras no expansionismo marítimo, sob o comando do monarca espanhol Felipe II. Em 1614, com seis anos de idade, desembarcou no porto da Bahia acompanhado dos pais, e aos quinze teve a solicitação de ingresso à Companhia de Jesus atendida. Esses dados biográficos nos sugerem um aspecto importante na obra de Vieira que será discutido aqui: a simbiose entre o projeto expansionista e o projeto evangelizador – simbiose que podemos chamar simplesmente de projeto civilizatório.
Desde o início das colonizações, a ordem dos jesuítas se engajou na conversão dos gentios (indígenas) e na formação dos filhos das novas terras. No início do noviciado, Vieira conviveu com os padres jesuítas numa aldeia indígena e ficou impressionado pelo trabalho evangelizador da ordem, mas decidiu-se por dedicar seu tempo não apenas à conversão de índios, como também a um projeto humanístico bem amplo. A obra sermonística de Vieira é bem extensa, compondo-se de cerca de duas centenas de sermões, que, para além do caráter religioso, constituem-se como importantes registros históricos da situação da colônia, e entre eles encontram-se os sermões dirigidos aos negros escravizados. Inclusive, seu primeiro sermão público, denominado Sernão XIV do Rosário, cujo tema é a escravidão do africano em terras brasileiras, é proferido justamente aos negros escravos de um engenho da região do Recôncavo Baiano.
Esse sermão é bem exemplar para o tema deste ensaio porque nele, intencionalmente ou não, Vieira justifica a empresa colonial na escravização e no desterramento do africano, que em sua terra é gentio, mas na nova terra, paradisíaca e colonial, pode obter a salvação por razão do batismo (VIEIRA, Sermão XIV, c. 5). Quer dizer, o tráfico negreiro foi lucrativo não apenas para a empresa colonial mas também para a empreitada cristã: levar o evangelho aos confins da Terra e converter o maior número possível de almas à fé em Jesus Cristo. Além disso, o engenho – caracterizado pelo sermonista como “doce inferno”, denominação cheia de sentidos – é um local de redenção dos pecados, como foi o calvário de Jesus (VIEIRA, Sermão XIV, c. 7). Também assim como Jesus, são filhos da Virgem Maria, que os escolheu e os acolheu sob Sua proteção (VIEIRA, Sermão XIV, c. 6).
O Vieira do Sermão XIV é jovem, mas não é ingênuo. Ele era ciente dos abusos e da crueldade no tratamento dos negros escravizados. Sabia que reagir de forma direta ao sistema ditatorial dos senhores de escravos poderia significar para os negros, além do martírio da chibata, outros ainda piores, ou até mesmo a morte. Vieira se dirige, então, aos negros na tentativa de fazê-los entender a escravidão não como um castigo, e sim como um prêmio para a remissão do pecado original. A única forma de resistência por parte dos escravizados era a fé em Jesus e na Virgem Maria, de quem os negros eram devotos.
A resistência pela fé na salvação faz eco em outro sermão cuja temática é também a escravidão do negro: o Sermão Vigésimo Sétimo do Rosário. A fé na justiça e providência divinas faz o fiéis seguros de que as injustiças a que são sujeitados serão dissipadas no paraíso celestial, onde serão servidos pelo próprio Deus: “Esta é a mudança sobre toda a admiração estupenda, com que então vereis trocada a vossa fortuna, cá servindo aos homens, e lá sendo servidos do mesmo Deus” (VIEIRA, Sermão XXVII, c. 7). Vieira professa que “todo o homem é composto de corpo e alma, mas o que é se chama escravo não é todo homem, senão só ametade dele” (VIEIRA, Sermão XXVII, c. 2), a do corpo, e só esta padece do cativeiro, enquanto, para aquele que crê, a alma é cativa de Deus e só Ele pode dispor dela.
Vieira prega, a partir da distinção entre o corpo e a alma, que a transmigração do corpo de África para as Américas aconteceu para que a transmigração da alma, da Terra para o Céu, pudesse acontecer: “neste mesmo estado da primeira transmigração, que é a do cativeiro temporal, vos estão Deus e sua Santíssima Mãe dispondo e preparando para a segunda transmissão, que é a da liberdade eterna” (VIEIRA, Sermão XXVII, c. 1). Com isso, enfatiza a ideia já colocada no sermão XIV de que a condição de escravos assaz se assemelha com a cruz de Cristo. Aqui, enseja citar Bosi, quando fala da moral da cruz-para-os-outro:
“A cruz, que humanizara o Redentor e hipostasiara a oblação de Jesus na pena do cativo, acaba sendo interpretada como sinal de um sacrifício válido em si mesmo, propiciatório por si mesmo, em aberta oposição a todo o relato evangélico, que acusa a farsa do julgamento, a violência da sentença, a hipocrisia dos fariseus, a impiedade dos saduceus, a boçalidade da massa exigindo a crucifixão do inocente, enfim a covardia de Pilatos ao entregar à fúria dos sacerdotes e dos esbirros um homem de quem dissera não ter nele encontrado culpa alguma” (BOSI, 1992, p. 148).
Assim, ainda que se pudesse dizer que a intenção do Padre Antônio Vieira era de consolar os negros escravizados e aliviar o fardo deles, ele acaba por servir à ordem mercantil e à boçalidade desta ao legitimar a espoliação do trabalho humano.
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