Diário de um homem supérfluo: uma leitura

Pétri de vanité, il avait encore plus de cette espèce d’orgueil, qui fait avouer avec la même indifférence les bonnes comme les mauvaises actions, suite d’un sentiment de supériorité, peut-être imaginaire.

(Pushkin, Eugene Onéguine)


Tchulkaturin é daquelas personagens que têm, a princípio, a capacidade de suscitar a simpatia do leitor. Moribundo, começa a narrar sua vida, e começa na infância. Criança infeliz, embora tivesse conforto material e o amor dos pais, suas alegrias se resumiam às brincadeiras no jardim, à amizade de seu cachorro e ao amor que tinha pela criada da casa. Com a morte de seu pai, que o faz chorar copiosamente e o marca definitivamente, muda-se com a mãe e tem de dar adeus ao seu querido jardim como um homem a sua pátria. Quer dizer, já pequeno conhece o degredo, o viver sem pertencer.


Tchulkaturin se reconhece e se autodenomina um homem supérfluo, uma quinta roda, por assim dizer, e se sente assim desde criança. Faz condoer o leitor sensível quando relata: "A facetious gentleman, a great devotee of preference, said very happily about me that I was the forfeit my mother had paid at the game of life". Diz que tem um cadeado interior, que o impede de se expressar. Para completar — digo, completar os fatores que despertam o condoimento do leitor — para completar, ele se apaixona por Elizaveta Kirillovna, ou,  simplesmente, Liza, filha de Kirilla Ozhogin, um funcionário do alto escalão da administração pública. 


Mas Tchulkaturin não é de todo agradável nem merece toda a comiseração que causa no início. Ele está para morrer e escreve um diário que não espera que ninguém leia: pode ser sincero; não precisa dissimular sentimentos nem pensamentos que possam revelar alguma falha moral. Ele narra um acontecimento importante de sua vida para demonstrar que ele é realmente um homem supérfluo, e dá a entender que é assim por desdita da Natureza, que "did not reckon on my appearance, and consequently treated me as an unexpected and uninvited guest". Contudo, o que se percebe é que ele é um homem mesquinho e orgulhoso, que não sabe amar mas quer ser amado, ou, melhor dizendo, admirado. 


"I did not even dream of her love. I desired only her affection, I desired to gain her confidence, her respect, which, we are assured by persons of experience, forms the surest basis for happiness in marriage".


Mas Liza se apaixona por outro, o Prince N-. É um amor profundo e puro, que sobrevive até mesmo à rejeição sem amargar nunca, mas chega mesmo a crescer e se expandir no desejo da felicidade do amado.


"'What can I do! I feel I shall love him to the grave. I have forgiven him, I am grateful to him. God give him happiness! May God give him a wife after his own heart'—and her eyes filled with tears—'if only he does not forget me, if only he will sometimes think of his Liza!'"


Tchulkaturin, pelo contrário, tem um amor mesquinho, egoísta, que não aceita a rejeição e deseja a infelicidade da amada se isso significar a sujeição dela aos seus caprichos narcísicos. Ele pensa em matar o Prince N- covardemente e chega a regozijar com a tristeza que Liza sentiria por isso. 


"Then, in wrath, I suddenly flew into quite the opposite mood. I swore to myself, wrapping my cloak about me like a Spaniard, to rush out from some dark corner and stab my lucky rival, and with brutal glee I imagined Liza's despair…."


Os eventos do baile e do subsequente duelo entre Tchulkaturin e o Prince N- são os mais representativos e reveladores do verdadeiro caráter do memorialista. O homem supérfluo é, na verdade, descompensadamente orgulhoso. No início do livro, ele relata um acontecimento trivial, sem muita importância e que pode passar batido pelo leitor, mas é importante para entender o temperamento do homem supérfluo e sua atitude no baile, narrado mais a frente. Esse acontecimento se passa em uma das recepções que Ozhogin fazia em sua casa.


"There used to come also two landowners, inseparable friends, both no longer young and indeed a little the worse for wear, of whom the younger was continually crushing the elder and putting him to silence with one and the same reproach. 'Don't you talk, Sergei Sergeitch! What have you to say? Why, you spell the word cork with two k's in it…. Yes, gentlemen,' he would go on, with all the fire of conviction, turning to the bystanders, 'Sergei Sergeitch spells it not cork, but kork.' And every one present would laugh, though probably not one of them was conspicuous for special accuracy in orthography, while the luckless Sergei Sergeitch held his tongue, and with a faint smile bowed his head" (grifo acrescentado).


Tchulkaturin não estava disposto a se comportar como Sergei Sergeitch. Quando sentiu-se humilhado pelo Prince N-, voltou-se e o desafiou: 'You think fit to laugh at me, it seems?' e o insultou, chamando-o de "empty-headed Petersburg upstart".


Tchulkaturin é também invejoso. Não tendo qualidades pessoais, tenta rebaixar seu rival, relativizando suas qualidades.


"The prince was not only handsome and clever: he played the piano, sang, sketched fairly well, and was a good hand at telling stories. His anecdotes, drawn from the highest circles of Petersburg society, always made a great impression on his audience, all the more so from the fact that he seemed to attach no importance to them….


The consequence of this, if you like, simple accomplishment of the prince's was that in the course of his not very protracted stay in the town of O—— he completely fascinated all the neighbourhood. To fascinate us poor dwellers in the steppes is at all times a very easy task for any one coming from higher spheres".


Prince N- não é a única figura que se mostra em contradição e conflito com a figura do memorialista. Tem-se também Bizmyonkov. Ele é o epitome do amante paciente e abnegado, que se satisfaz com a simples presença da amada, cuja alegria o alegra e cujo infortúnio o entristece, mas, seja como for, ele está lá, para compreendê-la e compartilhar momentos. A paciência, a desambição e a amizade de Bizmyonkov conquistam o coração de Elizaveta, e ela se torna sua esposa. Tudo que Tchulkaturin queria era que ela fosse sua esposa. Mas Tchulkaturin, com seu amor-próprio ferido, não soube ser o amigo-amante que Bizmyonkov foi para Liza.


Em suma, Tchulkaturin é supérfluo, redundante, secundário, porque assim se dispõe. É obra dele mesmo, não da Natureza, que assim teria determinado injustamente, como deixa a entender. Ele é supérfluo porque, voluntarioso e ensimesmado, insiste em ser parte de uma história que não é a dele. Ele não aceita que o papel de personagem principal no coração de Elizaveta já pertença ao Prince N- e toma atitudes que ferem quem ele diz amar. Ao fim e ao cabo, o homem supérfluo é vítima de seu amor-próprio, que o impede de amar autenticamente, sem contrapartida, um outro alguém, como Liza ama Prince N- e como Bizmyonkov ama Liza.



Comentários

Postagens mais visitadas